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Crítica | Minha Vida na Alemanha de Hitler

por Luiz Santiago
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Minha Vida na Alemanha de Hitler não é exatamente o documentário que um espectador comum espera sobre… a vida na Alemanha de Hitler. Em primeiro lugar, sua forma de apresentação é diferente, inteiramente ligada ao tipo de material-fonte no qual é baseado. No verão de 1939, alguns professores da Universidade de Harvard realizaram cerca de 20 mil de entrevistas com alemães no exílio, pessoas que viveram naquele país entre os anos de 1933 (chegada de Hitler ao poder) e novembro de 1938, na Noite dos Cristais, quando dezenas de sinagogas foram queimadas, explodidas ou depredadas nas principais cidades do país.

Após a pesquisa, o material foi arquivado e então, esquecido. Neste documentário de Jérôme Prieur, temos contato com esses depoimentos, declarações de homens e mulheres de diferentes idades. Alguns judeus, outros católicos, alguns de outras religiões e até ateus. As ocupações são diversas. Médicos, professores, artistas, funcionários do governo, escritores, comerciantes. A sensação que esse tipo de abordagem nos traz é a mais desalentadora possível e, ciente do poder que narrações desse tipo têm sob o público, Prieur escolheu permear o documentário com imagens da época, vídeos raros (alguns colorizados) dos comícios de Hitler, da ação da SA nas ruas de diversas cidades da Alemanha, da violência que crescia para todo lado, da incredulidade de muitas pessoas diante do que estava acontecendo.

O cenário político que permitiu a chegada de Hitler ao poder é o melhor ponto do filme, que se divide em blocos cronológicos bem ajustados, começando com as eleições, na disputa do caldeirão de partidos e ideias políticas para o Parlamento, culminando com a virada de jogo que ninguém pensava que poderia existir. Os relatos dão conta de que o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães se destacava no meio de todos os outros pelo forte apelo de resoluções rápidas, pela insistência de identificar culpados dentro da Alemanha que eram “as verdadeiras causas” do país estar naquela terrível situação econômica e por um olhar inteiramente para dentro: símbolos, slogans, valores patrióticos extremados que culminavam num alto nível de ódio ao que era de fora… tudo isso estava nas propagandas, nos discursos e tudo isso parecia, com uma rapidez muito grande, ganhar ainda mais adeptos.

As cartas, as fotografias, os diários e as crônicas dos exilados dão conta de modelos de propaganda e mudança de status quo que nem as mentes mais inteligentes do país, à época, se atreviam a falar contra. O silêncio era constrangedor. Parecia faltar o mínimo de coragem. Já o lado extremo se mobilizava com fulgor. Primeiro, os jornais dos Nazistas que circulavam nas ruas difamando opositores políticos ou quem se colocava, em centrais estudantis ou centros trabalhistas, contra o Partido. Um dos entrevistados (um médico) diz que “não conseguiria acreditar que palavras como aquelas pudessem ser impressas em um jornal” e, o pior de tudo, é que eram exatamente isso: difamações. A insatisfação da população se intensificava ainda mais quando confiáveis cidadãos eram reportados como “degenerados“. E os nazistas viam engrossar as vozes que lhes apoiavam.

Segundo os relados lidos no documentário, notamos que os alvos mudaram pouco a pouco a partir da chegada de Hitler ao poder. Como as entrevistas são curtas e dão conta de um ponto específico da vida do entrevistado, falta uma maior exploração desse aspecto dos depoimentos, mas o principal é aquilo que já conhecemos da historiografia: opositores políticos, comunistas e judeus estavam na mira. Num dos relatos, uma professora diz que era espantoso que tudo o que Hitler e o Partido propunha era acatado sem questionamentos ou com a fala de que aquele tipo de atitude era melhor do que qualquer outra opção disponível para o país. Ao retirar de cena sua oposição e amedrontar futuros opositores, o sistema de propaganda já abocanhava a juventude e fazia com que todos estivessem nos inúmeros desfiles ou se aliassem ao Partido para garantir o emprego. A normatização da violência também entrou para o vocabulário das grandes cidades, mesmo quando alemães não nazistas eram atacados ou tinham seus comércios depredados na rua: “Por que continuou se encontrando com aquele amigo judeu?“; “Se não tivesse se encontrado com aqueles comunistas, nada teria acontecido a ele“…

O medo, nos relatos, é inicialmente local, mas com a esperança de que alguém como Hitler — no começo visto como um “fanático ridículo” — não duraria muito no poder. Um pequeno discurso do sobrinho de Von Hindenburg exibido na fita, dá conta disso. Depois, quando suásticas começaram a se espalhar pelo país e aqueles jovens de “ridículos uniformes marrons de quem todos zombavam” começaram a bater, prender e não raro matar “inimigos do Estado”, a coisa mudou. Segundo um dos depoimentos, a fala de que “se trata apenas de uma febre momentânea, logo isso será anulado e teremos novas eleições” sumiu da boca dos ingênuos. Depois, apenas os alemães com uma árvore genealógica ariana e sem contato pessoal com pessoas que o governo considerava sujo e inimigo é que vivia bem e feliz. Era para essas pessoas de puro sangue e sem relações com a escória do país que a Nova Era estava sendo construída. Mas isso, também, tinha prazo de validade. Os eventos de 1939 começaram lentamente a virar o jogo. Isso, porém, é outra história…

Minha Vida na Alemanha de Hitler é um filme com relatos sobre um modus operandi que, no século XXI, não é nada estranho para quem está minimamente antenado em política e consegue fazer a leitura da ascensão de líderes e partidos em diversos países. As mesmas ideias, o mesmo formato de encanto cego e ideológico, a mesma descrença e promessa em um outro tipo de tomada de ação permanecem vivas. O filme é um pouco cansativo pela sua base de leitura de depoimentos, sempre a mesma (a trilha sonora e a montagem também não ajudam muito a animar as coisas) e termina de uma forma anticlimática, mas que nos é perfeitamente compreensível, afinal de contas, é da vida e dos depoimentos dessas pessoas que se construiu esse alerta em forma de filme, um pedaço da memória coletiva sobre um fantasma que segue bem nutrido pelas massas. Um fantasma de ideias, poder e ânsia por controle cuja fome não conhece limites.

Minha Vida na Alemanha de Hitler (Ma vie dans l’Allemagne d’Hitler) — França, 2017
Direção: Jérôme Prieur
Roteiro: Jérôme Prieur
Duração: 104 min.

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