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Crítica | Morangos Silvestres

por Luiz Santiago
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Ingmar Bergman teve a primeira ideia para a escrita do roteiro de Morangos Silvestres um ano antes do lançamento do filme, quando fez uma visita à antiga cidade onde morava sua avó e entrou na velha casa da família, tendo a impressão de que se abrisse uma daquelas portas seria visitado por cenas de um passado que, de repente, o assaltaria. Nesse mar de nostalgia e durante um período em que ficou hospitalizado, o diretor começou a colocar a ideia no papel, até que já em avançado tratamento do texto preocupou-se com quem poderia interpretar o personagem principal, e eis que chegou a Victor Sjöström, o aclamado diretor e ator sueco de A Carruagem Fantasma e Vento e Areia e a quem Bergman tinha profunda admiração, além de já o ter dirigido em Rumo à Alegria (1950).

Com a condição de que pudesse voltar para casa todos os dias em torno das 17h, quando tinha o costume de apreciar sua bebida favorita, Sjöström aceitou o papel, o último que interpretaria. No filme, ele dá vida ao Dr. Isak Borg, um senhor na casa dos 70 anos que está para receber o título de Doutor Honoris Causa. Ele resolve ir de carro de Estocolmo para Lund, caminho que o colocará diante de reflexões capazes de abalar consideravelmente seu mundo tão cheio de certezas. Neste momento de sua vida, Isak Borg é forçado pelas circunstância a refletir sobre o vazio da existência, sobre a forma como viveu até aquele momento, como criou os filhos e como tratou as pessoas com quem se relacionou. O roteiro não o expõe como um homem desprezível, mas desde muito cedo percebemos que as idiossincrasias da idade tornam a convivência com ele um tanto difícil, apesar da amabilidade com que encerra os assuntos que o deixam irritado.

Para não cansar Victor Sjöström que já estava com saúde bastante frágil, Bergman procurou deixá-lo parado a maior parte do tempo, apesar de algumas vezes o ator ter batido o pé e dito que queria fazer outras coisas, andar, correr, não ficar apenas sentado em um carro ou deitado, comendo morangos silvestres enquanto lembrava de seu passado. Essa disposição do protagonista mostra o quanto o papel de Isak Borg lhe caiu como uma luva, inclusive mantendo a dualidade de homem duro e frio à primeira que, ao ser acompanhado de perto, se mostra doce e compreensível, dando espaço para conversas e falando muito mais de si do que parecia disposto à primeira vista.

Gunnar Fischer, o diretor de fotografia que ainda trabalharia em mais dois filmes de Bergman, O Rosto e O Olho do Diabo, amplia ao máximo o poder da memória do velho Doutor ao dar brilho ao passado, explodindo a luz nos figurinos brancos e na cozinha ou cômodos bem iluminados da casa do passado, sempre contrastados aos ambientes mais escuros do presente, seja em tomadas internas ou externas. Há inclusive uma brincadeira de Bergman sobre a posição nostálgica de Isak, vivenciando a ele mesmo quando jovem e quando criança, interagindo pela memória com alguém querido de seu passado. Nestas cenas, a fotografia ressalta ainda mais a presença da explosão de luz através do campo-contracampo, dando conta de um presente sempre opressivo e pessimista, mesmo que de fato não o seja; para um passado sempre mais caloroso, belo e despreocupado.

Entre discussões sobre fé levada a cabo por dois jovens e o choque de gerações que temos em pouco tempo (apesar da grande profundidade, o filme é estruturalmente muito simples), com pessoas de diferentes idades aproveitando ou desperdiçando oportunidades, seguindo o que é caraterístico de cada faixa etária — algo semelhante Bergman nos mostrou em sua obra anterior, lançada no mesmo ano, o telefilme A Chegada do Sr. Sleeman — e buscando, acima de tudo, a felicidade. Morangos Silvestres é uma visita ao passado a partir de um olhar maduro, onde a saudade da energia da juventude, das pessoas que partiram e de quando ainda se tinha para viver juntam-se para trazer uma lufada de crescimento pessoal (o fato de Isak pedir desculpas para a emprega no final é uma prova disso) e o peso indescritível da solidão.

Isak recebe tarde a punição pela sua frieza ao longo da vida e se impressiona o quanto aquilo o afeta. Ele entende que é tarde para remediar seu atual status, mas percebe que ao menos naquilo que estiver ao seu alcance, pode tentar controlar e fazer diferente. O roteiro de Bergman explora as opiniões das pessoas e seus sentimentos a partir de reações extremas, algumas vezes tóxicas e inconciliáveis, como visto no casal de adultos que provocam o acidente na estrada; outras vezes passíveis de serem compartilhadas e abertas à convivência, a despeitos das rusgas no meio do caminho, como no caso dos amigos discutindo religião ou da visão drástica de Evald (Gunnar Björnstrand) sobre o mundo e sobre o fato de ter filhos, uma postura diferente daquela sustenta por sua esposa Marianne (Ingrid Thulin), uma das “mulheres trágicas à beira da felicidade” que encontramos nos filmes de Bergman.

A visão de que sempre somos visitados pelas consequências de nossas ações passadas é o mote de Morangos Silvestres, mas o texto não coloca isso como uma vingança, carma ou elemento divino pré-moldados para nos assombrar. Vindo como memória e filtrada pela experiência de vida, essa cobrança moral e sentimental precisa encontrar a abertura certa para se manifestar. Aqui, é o título que Isak está prestes a receber e que faz com que ele se perca pensando sobre coisas que não tinha se permitido até então. É desse encontro consigo mesmo que o peso dos atos e o agridoce dos tempos felizes do passado vêm à tona, como se dessem mais uma oportunidade ao velho Doutor de acomodar-se e provar os morangos silvestres que ele mesmo produziu ao longo da vida.

Morangos Silvestres (Smultronstället) — Suécia, 1957
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Victor Sjöström, Bibi Andersson, Ingrid Thulin, Gunnar Björnstrand, Jullan Kindahl, Folke Sundquist, Björn Bjelfvenstam, Naima Wifstrand, Gunnel Broström, Gertrud Fridh, Sif Ruud, Gunnar Sjöberg, Max von Sydow, Åke Fridell, Yngve Nordwall, Gunnel Lindblom, Lena Bergman
Duração: 91 min.

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