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Crítica | Motriz

por Leonardo Campos
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O Brasil teve a chance de apostar na “descolonização” da literatura e dos costumes recentemente, com as apostas que indicavam Conceição Evaristo como a nova “imortal” do Olimpo da Academia Brasileira de Letras. Infelizmente, como nada anda bem em nosso país nos últimos anos, o posto foi cedido para Cacá Diegues e suas contribuições cinematográficas. Entre os debates sobre racismo e perpetuação de injustiças, a doutora em Literatura e escritora renomada pode não ter levado a melhor, mas com o lançamento de Motriz em alguns festivais este ano, comprova que é interesse de muitas pessoas que compreendem e são guiadas pelos impactos de seu legado.

Ganhadora do Prêmio Jabuti pela coletânea de contos Olhos D’Agua, nome da emocionante história de abertura, Conceição Evaristo tece edificantes tramas de idosos, mulheres, crianças, geralmente alijados dos processos que engendram a nossa sociedade interligada pelos fios da corrupção, da desigualdade social e do desamparo. São personagens com existências melancólicas, mas também guiadas por fios de esperanças. Inspirada pelo fascinante mundo poético, a cineasta iniciante Taís Amordivino entrega o seu corpo e a sua alma para arrancar, sem forçar a barra, possíveis lágrimas do espectador.

Tal como nos contos do livro, Motriz começa com pequenos gestos e situações imprecisas que vão ganhando notoriedade, fluxo e movimento ao passo que a narrativa avança. Com proposta de adaptação que foge do equivocado ideal de “fidelidade” ao texto ponto de partida, a produção emula alguns elementos do conto e consegue trazer uma reflexão própria. No conto de Conceição Evaristo, a narradora nos apresenta a uma mulher que vive envolta numa redoma de imagens da mãe, instantes que nos remetem aos meandros de sua memória. Uma memória erguida por momentos de alegrias e tristezas, lágrimas e largos sorrisos, histórias individuais que podem perfeitamente, tal como no conto literário, ser representação simbólica de tantas outras mulheres em situações similares.

Com enquadramentos fixos e movimentação intimista, a câmera capta alguns instantes de Nilzabete Oliveira Santos: seu cotidiano, o café da manhã, os afazeres domésticos, os seus momentos de distração, os sonhos e traumas, as alegrias e tristezas de uma mulher que não acredita mais no caloroso sentimento de paixão, algo que ela alega ser fruto de sua juventude. Hoje ela vive das lembranças, do orgulho da filha que saiu de casa para se tornar uma “cinderela baiana”, estudante de Cinema e Vídeo em Salvador, capital da Bahia, área cheia de inseguranças e imprecisões.

Em suas lembranças também habita Grasiele, filha de Nilzabete e irmã da cineasta, falecida por conta de um problema de saúde (meningite), em 2012, situação que mexeu com a vida da personagem, fazendo-a sair de Salvador para morar em Minas Gerais, tendo em vista cuidar de sua mãe, a idosa Odília Maria dos Santos, a “matriz” dessa rede de mulheres, energizada pela “motriz” que é Nilzabete Santos, uma mulher que provoca “saudades” em Taís Amor Divino, potência para as imagens em movimento erguidas pelo roteiro também assinado pela jovem cineasta. A condução musical, guiada pela dupla formada por Matheus Aragão e Felipe Aragão, é um recurso que se faz importante, pois acompanha as imagens realizadas entre 2016 e 2017 em Jordânia, interior de Minas Gerais, um município fundado em 1948, com população de pouco mais de 10 mil habitantes.

Motriz não é esteticamente excepcional, cabe ressaltar. Está longe disso. Talvez um orçamento um pouco maior e mais maturidade da cineasta empregassem ao filme uma linha narrativa que fizesse dialogar com uma fatia maior de público, indo além dos eventos entre os pares cinematográficos e as exibições em festivais. Neste quesito, entretanto, adentro num impasse. Será que é esse o interesse da cineasta? Talvez ela tenha consciência do feixe mais restrito de pessoas que contemplarão seus filmes, exercícios iniciais de uma carreira que pode ser promissora, basta a jovem cineasta se mostra habilidosa nos jogos do campo de produção cinematográfica ainda predominantemente masculino, branco e heterossexual.

Diante do exposto, me aproximo do final desta reflexão com certeza de que o filme ganha por descolonizar o olhar e sair dos eventuais paradigmas que profissionais insistentes do campo da Comunicação Social: a criação de narrativas dentro dos padrões engessados internacionais, estruturas que geralmente não dialogam com a nossa realidade. Por meio de seu filme cheio de poesia, sorrisos estampados e arroubos silenciosos, a cineasta resgata a sua memória, contempla as mulheres da sua vida, em especial, a sua mãe, permitindo também que os espectadores, ao assistir seu exercício reflexivo, retomem também as suas próprias histórias de vida.

E voltando ao momento de Conceição Evaristo, importante ressaltar a sua participação na I Virada da Consciência Negra, evento organizado pela Faculdade Zumbi dos Palmares, em parceria com a ONG AFROBRAS, encontro que pretende transformar a cidade de São Paulo numa arena de discussões de cunho político e social, tendo os temas que gravitam em torno da população negra como pontos nevrálgicos. Oportunidade, inclusive, para Motriz tentar se “fazer” presente, haja vista a necessidade de ampliar as dimensões de público e crítica.

Motriz — Brasil, 2018.
Direção: Taís Amordivino
Roteiro: Taís Amordivino
Elenco: Nilzabete Santos, Odília Santos, Taís AmorDivino
Duração: 15 min.

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