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Crítica | Na Mira da Morte (1968)

por Guilherme Almeida
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Em 2014, completaram-se os 250 anos do lançamento do primeiro romance da literatura gótica, O Castelo de Otranto; e em 2018, o bicentenário de Frankenstein. A cultura gótica, influente em várias áreas como moda e arquitetura, estendeu-se para o cinema, dando origem a filmes com estilo marcante, arcos ogivais, castelos tenebrosos, tramas macabras e personagens fantasmagóricos. O ator Boris Karloff participou de um dos exemplares mais paradigmáticos do gênero, Frankenstein (1931), lançado pela Universal e dirigido por James Whale.

O mesmo Karloff (na pele de Byron Orlok) figura em Na Mira da Morte (1968), obra do historiador de cinema Peter Bogdanovich. O filme articula uma temporalidade dúplice: por um lado, o período clássico do sistema de estúdios de Hollywood, dentro do qual segmentaram-se vários gêneros narrativos, entre eles os filmes de terror com seus monstros e vampiros; por outro, os Estados Unidos dos anos 60, com uma sociedade já habituada à televisão, um conglomerado de estúdios já “quebrado” e uma violência real crescente, comparada à qual as tentativas cinematográficas de provocar susto parecem brincadeira de criança.

Orlok sente-se uma peça de museu; acha que seu ofício está completamente ultrapassado, que a função social do cinema se esgotou, e por isso decide se aposentar. O personagem encarna a discussão histórica de que os filmes hollywoodianos, tal como eram produzidos nos anos 40 e 50, parecem não acompanhar as condições efetivas de sociabilidade que tiveram lugar nos tresloucados anos 60. Como assustar os espectadores com raios, trovões e morcegos se nos jornais pululam os serial killers? Se a violência bate à porta, como não achar ingênuo o ilusionismo da sétima arte, que protege o público com a grande barreira que é a telona?

O antagonista de Orlok, nesse sentido, não poderia ser, perdoada a redundância, mais antagônico. Bobby (Tim O’Kelly) é um jovem americano de classe média, obcecado por armas e munição. O esqueleto da narrativa é baseado na interpolação de episódios ligados ao jovem e ao velho. Ao segundo se associa a tentativa de aposentadoria, descanso e tranquilidade; já o rapaz, desde o começo apresenta sinais de seu ímpeto assassino e, a certa altura, começa uma terrível matança pelo assassínio de membros de sua família. Se nas cenas de Orlok predominam a leveza e o humor britânico, nas de Bobby o que vemos é a frieza na eliminação de pessoas, e o desejo incontrolável de abater o maior número de vítimas que lhe aparecerem pela frente. Um aspecto da fotografia realça o contraponto entre os núcleos. São característicos dos filmes góticos coloridos os tons fortes (vejam-se aqueles lançados pela produtora inglesa Hammer). Na maior parte das cenas de Na Mira da Morte, porém, predominam espectros desbotados e fracos, como o bege, o azul claro, o cinza e o branco.

É no longo episódio final, em um drive-in, que o psicopata consegue obter mais cadáveres. Muito provavelmente, as cenas em que Bobby mata quem está dentro de veículos foram inspiradas pelo famoso Zapruder Film, uma gravação amadora que por coincidência captou o exato momento da morte do presidente Kennedy, em 1963. Nessa parte do filme, os núcleos narrativos até então justapostos finalmente se intercruzam. Bobby e Orlok encontram-se no mesmo ambiente e o famoso ator corre risco real. A resolução do conflito se dá pelas mãos do próprio Orlok quando, numa sequência de montagem paralela, acompanhamos seu avanço simultâneo na “realidade” da obra e no filme rodado no drive-in. A facilidade na vitória do antigo ator compromete o sentido geral da trama engendrada por Bogdanovich e Polly Plat, até o momento fundada na incomensurabilidade de poder do terror real, relativamente aos monstros vitorianos já alquebrados.

De qualquer maneira, apesar da inexplicável fraqueza de roteiro, salta aos olhos a profunda consciência criativa do diretor. Bogdanovich, não só nessa, mas em outras de suas obras — como A Última Sessão de Cinema (1971) e Lua de Papel (1973) — oferece ao público uma verdadeira aula de (e sobre) cinema, além de iluminar pontos fulcrais da política e cultura americanas. Merece destaque, no caso do filme em apreço, a forma pela qual Bogdanovich associa a instalação das televisões nos lares do país a um ponto de virada cultural dos EUA. As TVs, como se sabe, questionaram o monopólio do entretenimento visual que até então pertencia aos estúdios; além disso, fundaram um novo tipo de apreensão, mais fragmentado, já que o escuro isolante das salas de cinema é substituído pelos cômodos das casas, onde outros estímulos podem interferir e atrapalhar a integridade da experiência da audiência. Tamanha é a relevância do novo veículo para os símbolos do filme que sua sonoridade é quase ubíqua, muitas vezes aumentada de modo estridente- capta-se, assim, a penetração dos televisores na vida cotidiana da população.

Também é de se notar os toques metalinguísticos e autobiográficos proporcionados por dois personagens. Refiro-me, claro, a Byron Orlok e Sammy Michaels. Sob a persona de Byron (nome evidentemente alusivo ao grande escritor romântico inglês), Boris parece estar representando a si mesmo- uma grande estrela da era clássica que vê seus filmes antigos virando itens de inventário. O próprio Bogdanovich interpreta o roteirista Sammy, um jovem adentrado no mundo do cinema, sequioso por uma chance de demonstrar seu talento e conseguir manter o “medalhão” Orlok no elenco do filme em projeto.

Do ponto de vista da recepção crítica, pode-se dizer que Na Mira da Morte não recebeu muitos louros. O grande especialista Roger Ebert, por exemplo, assevera que a interposição dos dois fios narrativos não é muito eficiente, posto que as cenas com Karloff são desnecessárias e antieconômicas. Discordo do mestre, com a devida vênia; ou melhor, concordo discordando. De fato, as sequências concernentes a Byron Orlok nem sempre fazer o enredo progredir; muitas parecem gratuitas, desnecessárias e menos interessantes do que as do enlouquecido Bobby. Mas talvez o desenvolvimento objetivo e direto da trama, com vistas a um fim determinado, não seja aqui um imperativo. Como destacado, o filme estrutura-se sobre uma lógica de contraponto; o caráter desinteressante e mesmo imotivado de muitas das cenas do lado “gótico” da obra, plasma, em verdade, a ampla discussão em relevo durante o longa inteiro: o transe social torna obsoletos certos itens da cultura. Assim, só caberia a Orlok, um “anacronismo ambulante”, um roteiro que, muitas vezes desbaratinado, não caminha para lugar nenhum.

Na Mira da Morte (Targets, EUA- 1968)
Direção: Peter Bogdanovich
Roteiro: Peter Bogdanovich, Polly Platt
Elenco: Tim O’Kelly, Boris Karloff, Nancy Hsueh, Peter Bogdanovich, Arthur Peterson, Monte Landis, Daniel Ades, Stafford Morgan, James Brown, Mary Jackson
Duração: 90 min.

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