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Crítica | Nada de Mau Pode Acontecer

por Luiz Santiago
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Já dizia o autor da Epístola aos Hebreus: “Sem fé é impossível agradar a Deus“. Em um mundo de desesperança, maldades e descrença, a fé pura pode ser a salvação do homem, aquilo que poderá lhe dar alento, felicidade e salvá-lo de todo o mal. Só que não.

Nada de Mau Pode Acontecer, um hino tétrico à fé cristã fanática e destruidora, é um dos filmes mais angustiantes que eu já vi, e isso não tem a ver com litros de sangue, corpos mutilados e coisas do tipo. Tem a ver com um bom contexto.

A história é (pasme!) baseada em fatos, e acompanha a vida de um rapaz chamado Tore, que se torna membro dos Jesus Freaks, um grupo punk religioso que consegue arregimentar um grande número de jovens fiéis para sua causa. Com uma doutrina rígida e postura esquisita de seus membros, os Jesus Freaks seguem evangelizando e ganhando público, realizando feitos que chamam atenção por onde eles passam. O grupo acredita que todo fiel a Deus/Jesus/Espírito Santo tem uma missão na Terra, e esse fiel deverá cumprir sua missão assim que descobrir qual é. E é por essa descoberta que Tore, o protagonista, espera.

O filme realmente começa após o reencontro de Tore com o homem para quem consertou o carro, depois de uma oração a Deus. É a partir da relação aparentemente amigável entre eles que as coisas ficarão cada vez mais estranhas e aterradoras.

Katrin Gebbe divide o filme em capítulos e usa de uma estética quase documental para filmar a jornada de Tore. Alguns momentos dessa estética são bastante recorrentes, como as vezes em que o jovem tem seus ataques de epilepsia, sempre em ambientes escuros ou momentos de pouca luz, uma indicação visual de sua “possessão”, que segundo o jovem, é feita pelo próprio Espírito Santo. Esse contraste entre imagem e discurso é um ponto presente em todo o filme, não só nos ataques epiléticos de Tore mas também nas indicações religiosas, nas músicas utilizadas, nos poucos momentos de alegria e mesmo na construção psicológica e evolução das personagens através dos figurinos, especialmente das cores das camisetas e blusões.

Mas a aparência documental e a fotografia crua e um pouco suja de Moritz Schultheiß não são apenas para um momento da fita, mas para toda sua duração, uma escolha que faz total sentido na história narrada. O contato de Tore com a família de Brenno é inicialmente amigável, e expõe toda a fragilidade, inocência e fanatismo do rapaz. Ele não se importa com dinheiro ou outra coisa que não seja sua fé e as pessoas que julga serem seus amigos.

Mas o inferno cedo visita o paraíso. As coisas começam a mudar.

O roteiro, que também é assinado por Katrin Gebbe, faz um pequeno ciclo de felicidade se fechar para então começar um outro ciclo narrativo, o ciclo da relação Tore-Brenno, que evolui da camaradagem para a execução plena da maldade. Brenno começa agredindo Tore como vingança por este ter recebido maior atenção da jovem Sanny, e essa agressão é o ponto de partida para que o botão da perversão seja ativado em Brenno e o teste da fé de Tore comece.

O que acontece daí para frente é quase impossível descrever ou colocar corretamente em palavras. Quero dizer, os fatos são perfeitamente possíveis de descrever, mas mesmo que os contextualizemos, vai faltar a emoção da obra, por isso eu aconselho: se você não tem problemas com críticas à fé e filmes de tendência forte, simplesmente assista ao filme. A sensação que temos enquanto vemos a maldade assumir o comando da situação é que Brenno está sempre com raiva e desconta todas as suas frustrações em Tore, além de ter uma composição psíquica psicopata, porque ele faz cada coisa com o rapaz (a cena da foto de destaque deste texto é uma das mais angustiantes) e parece não sentir remorso ou qualquer outro sentimento verdadeiro a respeito. Tore se torna um experimento, um boneco de descontar cólera, um objeto para ser punido por não fazer nada.

Quando a sessão do filme terminou, a sala em que eu estava, na 37ª Mostra SP, ficou parada, como que anestesiada. Só alguns incômodos segundos depois as pessoas começaram a se levantar e falar baixinho, quase com medo de se pronunciarem a respeito. Essa é a prova do quão marcante e forte é o filme, e de como a fé, que deveria ser algo bom e motivo de enlevo pessoal, pode levar uma pessoa à ruína ou à morte.

Tenho certeza que muitos leitores não vão gostar absolutamente nada do filme, muito menos do presente texto, que destaca suas qualidades e vê a obra como algo interessante, mas isso é algo de se esperar. Se as causas forem cinematográficas (já ouvi muita gente ter dito odiar o filme), menos mal, desde que haja uma justificativa para isso. Mas se a causa for unicamente religiosa… Só tenho a dizer que certas instituições ou grupos eclesiásticos criam um ideal de salvação e crença tão embabacador que faz com que os fieis percam completamente a razão e acreditem piamente que devem dar suas posses, sua dignidade, sua vida em prol de uma causa fantasma. E a ajuda suprema, nos momentos desse exercício de fé, não vem. Vide a história de Tore. Uma saga com todos os ingredientes de uma fé cristã falida.

Nada de Mau Pode Acontecer (Tore Tanzt) – Alemanha, 2013
Direção: Katrin Gebbe
Roteiro: Katrin Gebbe
Elenco: Julius Feldmeier, Sascha Alexander Gersak, Annika Kuhl, Swantje Kohlhof, Til-Niklas Theinert, Daniel Michel, Nadine Boske, Christian Bergmann, Uwe Dag Berlin
Duração: 90 minutos

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