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Crítica | Ninfomaníaca: Volume 1

por Marcelo Sobrinho
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A insistência de Lars von Trier em exagerar no marketing de seus filmes tem efeitos antagônicos sobre a sua recepção. Se, por um lado, o dinamarquês consegue chamar todos os holofotes para as suas obras, causando enorme expectativa por suas estreias, por outro, ele acaba deformando a imagem do que será o filme em si, atraindo olhares muito superficiais sobre o seu cinema. Foi notável o número de espectadores e até de críticos mundo afora que se decepcionaram com a suposta falta de ousadia de Ninfomaníaca: Volume 1. Tudo porque o dinamarquês, desde a coletiva de imprensa do Festival de Cannes de 2011 (ano em que Melancolia estava em competição), anunciou que Charlotte Gainsbourg seria a protagonista de seu próximo filme e, dessa vez, se trataria de um pornô.

Não faltaram elementos para todo tipo de conjectura banal sobre o novo longa-metragem. Muitos esperavam mais cenas de sexo explícito e, possivelmente, que Lars von Trier fosse ainda além do que foi com as escatologias de O Anticristo. Mas o que impressiona no diretor escandinavo é que, mesmo à beira de estragar a experiência de Ninfomaníaca: Volume 1 (as 4 horas totais acabaram divididas em dois volumes), a qualidade do que ele leva à tela costuma reverter rapidamente a situação. Mas nunca para todos. Compreender Lars von Trier exige repertório que vai além de conhecimento de cinema. Ele consegue ser didático com suas referências e com suas convicções filosóficas, mas não prescinde de exibi-las com grande agilidade e em alta dosagem. Por isso é tão fácil sentir-se à deriva nesse processo e assim acabar lhe imputando adjetivações bobas, como de “cineasta polêmico” ou que “deseja chocar” (tendo ele mesmo grande parcela de culpa nisso, é inegável).

Na primeira parte de seu longa-metragem de 2013, ele se dedica a contar a história de Joe desde a sua infância até a idade adulta, interrompendo-a em um anticlímax estupendo e que convida a guardar energias para o segundo volume. Charlotte Gainsbourg e Stacy Martin se revezam na interpretação da protagonista quando madura e quando jovem, respectivamente. Shia LaBeouf, vivendo Jerôme e Stellan Skarsgård, dando vida a Seligman, completam o trio principal de personagens. A protagonista é encontrada pelo personagem de Skarsgård caída em um beco escuro e com sinais de espancamento. Ela suplica que não chame a polícia, ele a leva para sua casa e assim, diante de seu confessor, ela inicia seu longo relato.

O ambiente onde se dá a confissão é uma espécie de santuário profano. Traz algo de fronteiriço, pois não tem a castidade nem o anonimato de um confessionário religioso, mas também lhe falta o alinho que se espera de um divã psicanalítico. Em vez disso, Lars von Trier oferece a seus personagens um pequeno quarto de hóspedes, que parece não ter sido preparado para a presença de Joe, tal como Seligman e o público também não se prepararam para ouvir sua história tão obscena quanto autêntica. É interessante pensar que o final apocalíptico de Melancolia parece se conectar ao início de Ninfomaníaca: Volume 1 por meio de uma metamorfose completa. Se Claire é a antítese da sadiana Justine no primeiro filme, agora o escritor francês ressurge entranhado em Joe como um mal intratável. O cineasta dinamarquês não oferece terapia a sua protagonista. Ele apenas lhe dá voz e, mais uma vez, ironiza qualquer expectativa de cura ou purgação.

O que muitos apontam como um excesso de didatismo nas digressões de Seligman (o filme recorre bastante a figuras, animações e alegorias nesses momentos) eu vejo como algo proposital. O protagonista de Ninfomaníaca, tão culto e ponderado, personifica a concepção epistemológica do mundo, tentando racionalizar o relato de Joe a todo momento. Ora acerta, ora erra. Mas Lars von Trier não deixa de fazer troça de seu próprio personagem, que recebe críticas bem humoradas da própria Joe.  Para os críticos que gostam de acusar o dinamarquês de levar-se a sério demais, pode ter sido bastante desconcertante lidar com o auto-deboche do diretor. Lars von Trier não é de fácil definição, por mais que seus detratores insistam em simplificá-lo à luz de suas próprias limitações.

Stacy Martin, um rosto desconhecido no mundo do cinema, faz de longe a melhor interpretação do longa-metragem. Sua personagem contempla o mundo com um olhar de neutralidade, um tanto blasé. Ao longo dos dois volumes de Ninfomaníaca, Joe examinará em uma dialética de provas e contraprovas os sentidos de sua própria sexualidade. A cena do vagão de trem, em que ela e uma amiga disputam quem faz sexo com o maior número de homens, revela o primeiro golpe do diretor contra uma ideia que já havia sido atacada em O Anticristo – a maternidade e a família enquanto significantes morais. Ao seduzir o personagem de Jens Albinus (o mesmo de Os Idiotas), Joe arruinará com sua sexualidade aberrante o surgimento de um novo núcleo familiar. Mais à frente, uma cena insólita envolvendo a personagem de Uma Thurman funcionará como a ofensiva definitiva contra essa ideia.

Os números de Fibonacci – 3 e 5 – que surgem no relato da primeira relação sexual de Joe, feita com Jerôme, sua paixão por toda a vida, dão lugar à contagem de passageiros seduzidos no trem. A sequência do matemático italiano, encontrada na natureza como uma espécie de código divino na criação do mundo, é violada pelas amigas. O sexo surge caótico, anárquico, executado sem medidas prévias e profanado pelas adolescentes. É interessante que Lars von Trier pontue sarcasticamente o início da cena com Born to Be Wild como trilha sonora. O dinamarquês abandona completamente as reflexões cosmológicas que fez sobre a Natureza em Melancolia para submergir na sujidade que se esconde no indivíduo e não mais no mundo. Ele desce à matéria pura. Com seus fluidos e seus humores.

Mesmo com alguns problemas próprios de um roteiro abarrotado de ideias, a exemplo da referência tão óbvia ao trítono como intervalo satânico, Ninfomaníaca se sai muito bem em sua primeira parte. A montagem do longa-metragem é, provavelmente, a mais dinâmica e moderna de toda a filmografia de Lars von Trier. Além das figuras e dos insert shots citados, a edição dessa vez aposta em técnicas ágeis e que evitam o arrastamento narrativo do filme. É o caso dos jump cuts, que surgem breves mas muito interessantes no quarto capítulo deste volume, demonstrando toda a dimensão trágica da doença do pai para Joe, e do cross-cutting, que é utilizado ao longo de todo o filme, mas sem se tornar cansativo.

A fotografia de Manuel Alberto Claro traz algo da beleza do trabalho de Anthony Dod Mantle em O Anticristo e do próprio Alberto Claro em Melancolia, mas ainda a considero inferior. O momento mais interessante de Ninfomaníaca: Volume 1 em termos fotográficos acontece exatamente no quarto capítulo – intitulado Delirium -, quando a paleta de cores é trocada para o preto e o branco. É esse desfalecimento de matizes que dá a primeira pista quanto à natureza do sexo para Joe. Quando a saúde de seu pai deteriora inexoravelmente, ela transa com um funcionário do hospital. E quanto pior é o estado clínico de seu pai, mais vigorosas são suas investidas sexuais. Quando ele finalmente morre, Joe revela sua excitação máxima. A sexualidade luxuriosa de Joe não aspira à transcendência nem à depuração moral. Seu corpo responde ao tormento emocional com o seu equivalente físico, isto é, o sexo como sentença. Para ela, gozar também é sofrer.

Lars von Trier guarda uma de suas melhores ideias para os minutos finais do filme. Seligman executa em um velho toca-fitas a peça Ich ruf zu dir, Herr Jesu Christ, escrita para órgão por Johann Sebastian Bach. As três vozes imbricadas na polifonia de Bach são comparadas a três amantes típicos de Joe. O primeiro, representado pelo baixo, é o homem que se dedica a lhe dar prazer. O segundo, na voz intermediária, é o que lhe toma de modo sorrateiro, mas enérgico. O terceiro, na voz superior (no caso, um cantus firmus), representado por Jerôme, é o homem que ela ama. Joe se lembra de sua amiga B lhe dizendo que o segredo do sexo era o amor. É assombroso que sua verificação de provas e contraprovas seja concluída com a revelação de que é no amor que a personagem de Stacy Martin se perde do prazer. O amor lhe traz anestesia e a coloca em um lugar que não lhe cabe. Joe é lançada ao nada.

Mas se o sexo para ela não encontra significado na família, na maternidade nem em sentidos sublimados como o amor, onde mais poderá encontrar? Um espectador mais atento formulará a questão oposta: onde mais poderá não encontrar? Eis a pergunta final de Ninfomaníaca: Volume 1, que termina exatamente onde deveria. A música é interrompida e Lars von Trier deixa a incômoda pergunta como uma bomba-relógio, que só detonará no segundo volume de seu filme.

Ninfomaníaca: Volume 1 (Nymphomaniac: Volume 1) – Dinamarca, 2013
Direção: Lars von Trier
Roteiro: Lars von Trier
Elenco: Charlotte Gainsbourg, Christian Slater, Connie Nielsen, Jamie Bell, Jean-Marc Barr, Jens Albinus, Mia Goth, Michäel Pas, Shia LaBeouf, Sophie Kennedy Clark, Stacy Martin, Stellan Skarsgard, Udo Kier, Uma Thurman, Willem Dafoe
Duração: 118 minutos

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