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Crítica | No Limiar da Vida

por Luiz Santiago
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A maternidade, ou melhor, os problemas pessoais e sociais relacionados à maternidade, sempre foram temas muitos caros a Ingmar Bergman. Desde o seu segundo filme, Chove Sobre Nosso Amor, a gravidez vinha sendo evidenciada, vista a partir de diversos focos, o unicamente feminino, o social/legal, o religioso, o familiar ou todos esses juntos. Em 1958, Bergman ainda estava devendo um filme prometido para a produtora/distribuidora Sveriges Folkbiografer e, para cumprir com a obrigação, uniu-se à sua amiga Ulla Isaksson, que escreveu o roteiro pungente de No Limiar da Vida.

A história é um drama realista que cobre um período na vida de três mulheres em diferentes idades e com diferentes relações para os bebês que carregam no ventre. No início, temos Cecilia Ellius (Ingrid Thulin), que chega à sala de emergência de um hospital, sofrendo de uma hemorragia. Ela está no fim do segundo mês de gravidez. Ao ser internada, Cecilia — que inicialmente queria muito o filho, mas depois se dá conta que sua “vontade” era uma percepção automática para “validar o casamento” e que estava errada desde o início — conhece Stina (Eva Dahlbeck), uma mulher forte, alegre e ansiando imensamente pelo bebê, que já está atrasado; e Hjördis (Bibi Andersson), que está esperando uma criança indesejada e já tentou fazer um aborto.

É em torno dessas três mulheres que o roteiro avança, levado adiante apenas pela soberba interpretação do trio protagonista, cada uma tendo o seu momento de destaque na tela, seus dramas pessoais apresentados, desenvolvidos e muito bem amarrados no final. Como o filme não tem trilha sonora, o peso dramático está todo nas interpretações, que transitam entre a juventude inquieta e cheia de incertezas e estágios diferentes da vida adulta e madura, quando uma escolha não é “apenas uma escolha“, mas envolve longas histórias, pessoas, compromissos e exige um cuidado maior de quem toma a decisão. Aos poucos, o espectador percebe que cada mulher age em distintas nuances de responsabilidade diante das coisas que lhes acontecem, ora apaixonadas demais, ora trágicas demais, ora cientes dos riscos e corajosas para aceitarem as consequências de seus atos.

Sem vaidade alguma — os figurinos são majoritariamente os do hospital, mudando apenas para Hjördis, ao receber alta na parte final do filme — e com um inquietante desenho de luz do diretor de fotografia Max Wilén, as mulheres são vistas por entre frestas, espaços da maca de hospital, com foco de luz apenas nos olhos ou em uma parte da face, contrapondo variações emocionais e dando para o público alguma explicação de sentimento em cena, mesmo que não haja uma única sílaba pronunciada.

De certo modo, percebemos aqui um breve retorno ao pendor estruturalmente social (na época, neorrealista) e de jovens amantes que constituíram a fase de abertura de Bergman no cinema, entre Crise (1946) e Juventude (1951). O aborto natural e provocado é discutido ao lado de implicações sociais, culturais e de relacionamentos (inclusive na crítica ao homem que faz o filho e abandona a mãe e a criança, recusando-se a assumir a obrigação paterna). Do mesmo modo, a vontade de ter filhos é colocada em xeque por um lado, e exaltada de outro, tanto pela contagiante alegria da personagem de Eva Dahlbeck (que tem uma lancinante e aplaudível cena de trabalho de parto, havendo diversos reportes de que pessoas desmaiaram durante este momento do filme, em exibições pela Suécia), quanto pela visão viciada que a personagem de Ingrid Thulin tinha a respeito do tema. Ela imaginava que precisava se casar. Depois, que precisava ter um filho. Mas nenhum desses dois estágios da vida foram realmente escolhidos por ela. Apenas obedecido. No filme, vemos a sua trágica e inquietante libertação.

Não existem reflexões filosóficas ou metafísicas (a base do cinema de Bergman neste momento) em O Limiar da Vida. A obra tem uma outra intenção, a de mostrar, de maneira crua e simples, alguns dias na vida de três mulheres dentro de uma mesma condição, mas com perspectivas diferentes. De certa forma, a obra pode ser vista como “estacionada” em um único lugar, mas não se enganem: o texto leva o tema a sério e não abandona aquilo que se propõe investigar. E Bergman, como um grande diretor de atrizes, retira da tríade principal momentos impecáveis, que se tornam ainda mais admiráveis quando descobrimos que o processo de filmagem foi bastante caótico, em um set precário, sujo e com um surto de gripe alastrado pela cidade, a ponto de parte da equipe passar algum tempo usando máscaras. Um tour de force feminino dentro e fora das telas. Um retrato sobre alegrias, sofrimento e esperança no limiar da vida.

No Limiar da Vida (Nära livet) — Suécia, 1958
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ulla Isaksson
Elenco: Eva Dahlbeck, Ingrid Thulin, Bibi Andersson, Barbro Hiort af Ornäs, Erland Josephson, Max von Sydow, Gunnar Sjöberg, Ann-Marie Gyllenspetz, Inga Landgré, Kristina Adolphson
Duração: 84 min.

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