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Crítica | No Portal da Eternidade

por Gabriel Carvalho
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“Deus me fez pintor para pessoas que ainda não nasceram.”

No Portal da Eternidade, drama dirigido por Julian Schnabel, diferencia-se de outras produções tematicamente similares, como o clássico Sede de Viver, uma das mais prestigiadas obras sobre a morte e a vida de Vincent Van Gogh. A maneira como o cineasta narra uma história já extremamente conhecida escanteia uma abordagem usual a cinebiografias – coisa que o filme, no final das contas, nem pode ser chamado. O projeto, contrariando um cinema mais ordinário, adentra numa jornada quase transcendental pela curiosa mente do pintor. O abuso dos artifícios cinematográficos ao alcance de Schnabel possui o intuito de exprimir os meandros existentes na cabeça de um ser humano aparentemente incompreensível. A premissa do enredo abrange os seus últimos dias, anos na verdade, ao passo que somos investigadores não do que ocasionou a sua morte, coisa que Com Amor, Van Gogh buscou ao público, mas de como a sua cabeça esteve e estava durante o antes, o agora e o depois. Porque o artista, mesmo enclausurado em sua insanidade, estava condenado, contudo, à eternidade. “Um pintor para o futuro”, comenta o roteiro.

A compreensão com meras palavras de uma subjetividade complicadíssima, única portanto, é uma árdua tarefa para qualquer contador de histórias. A literatura, porém, não foi o caminho escolhido pelo artista, mas a pintura, mexendo com sentimentos indecifráveis de uma pessoa para outra, intangíveis senão pelo olhar. A percepção significa imaterialidade, pois a interpretação é completamente pessoal – justificar nunca será suficiente. O cineasta se aproxima ao máximo de um abstracionismo, almejando o transporte da visão do seu protagonista para o espectador. O Escafandro e a Borboleta, magnum opus do mesmo cineasta, ao entendermos o que preenche realmente o seu jogo de sensações, é uma comparação óbvia às intenções também sensitivas trabalhadas em No Portal da Eternidade. A incomunicabilidade, em termos formais, de Van Gogh, com sinais de esquizofrenia, é a mesma incomunicabilidade, literalmente no caso de O Escafandro, de Jean-Dominique Bauby, interpretado na cinebiografia do editor francês por Mathieu Amalric. O ótimo ator retorna, aqui, no papel do físico que esteve com o pintor em suas derradeiras semanas.

A comunicação surge de outras maneiras – com as piscadas em um caso e as obras de arte em outro -, assim como Schnabel possui como missão principal, nesse longa-metragem, comunicar ao seu público o que seja mais próximo possível da verdade atrelada ao seu protagonista, ou seja, de formas distintas das costumeiras, que são mais literais, porém, não mais verdadeiras. A câmera subjetiva ganha uma estrondosa força no filme, do mesmo modo que uma instabilidade dos planos intenciona uma vontade dos responsáveis por distorcer nossas noções de mundo e arte. A estética disposta não percebe a nossa compreensão típica do belo – panorâmicas estáveis em paisagens estonteantes -, no entanto, justamente mistura a ordem das obras do artista, em um movimento pós-impressionista. A realidade é retratada sem precisar necessariamente retratar a realidade, como, a exemplo, a desordem da sua cabeça, prestes a chegar no caos absoluto. Os momentos mais desafiadores da obra urgem a necessidade de uma câmera na mão, de uma ruptura com a calmaria em inúmeros aspectos, como parciais desfoques, constantes, e reduções da percepção.

Os negros planos que ocasionalmente aparecem em cena, acompanhados de uma narração, são significativos para entendermos as destruições contínuas de uma sanidade, ansiando por um retorno ao que antes estava vigente. A orelha é cortada, mas, na cena seguinte, o personagem está prestes a ser tratado por um médico, como se nada sério realmente tivesse acontecido. Já quando a morte está próxima, ao invés de um testamento fúnebre, a narração comporta uma mensagem sobre dor – “o meu estômago está doendo“. Eis o vai-e-vem de uma mentalidade perdida, encontrando-se apenas quando em contato com os seus verdadeiros amores. A pintura como uma necessidade para viver. Julian Schnabel recria uma personalidade imensamente rica, paralelamente ao frutífero espaçamento que sugere ao ator principal do filme, Willem Dafoe, encarnando, com corpo e alma, uma debilitada, frágil e genial figura atemporal. O ator, com mais de sessenta anos, interpreta um personagem com menos de trinta e cinco, diferença gritante que, no final das contas, é indiferente, acrescentando, contudo, ainda mais pesar nas feições do artista.

A contemplação da natureza comporta algum dos momentos mais verdadeiramente singelos do longa-metragem. Quando conversa com Paul Gaugin (Oscar Isaac), expressando a sua vontade em transmitir o que enxerga ao mundo, o público já entende o quão verídico é esse depoimento. Willem Dafoe transmite um olhar que captura aquele espaço como sendo a sua real morada, espaço conivente para uma mente extremamente problemática sentir-se libertada – temática recorrente na filmografia de Julian Schnabel. Quando o ser humano desmonta o sentimento de serenidade presente nesse cenário, invadindo o ambiente que o protagonista interfere apenas com a sua criatividade, além dos passos necessários para caminhar de um ponto ao outro, o personagem surta mais uma vez. Os surtos são vívidos. A reclusão aparente do protagonista não é uma escolha própria. O pertencimento à natureza não o impede de desejar profundamente estar com pessoas – seu irmão -, embora não consiga conviver perfeitamente com elas, em decorrência de suas doenças mentais. Uma instabilidade na cabeça, assim como uma instabilidade da câmera.

As cores vivas – o verde imensurável, acima de tudo – são presentes, quase indescritíveis. O preto e branco, entretanto, surge abruptamente em uma cena para contrastar e, em um escopo completo, compreender pensamentos ímpares. Já as disfunções da câmera, em última instância, fomentam planos com camadas, capturando ambientes em dimensões, remetendo à arte de Vincent Van Gogh – ” esculturas”, explica Gauguin. A experiência sensorial, portanto, é magnífica. No entanto, discursivamente, No Portal da Eternidade expressa com verborragia mais do que precisaria, soando um pouco raso, na superfície dos diálogos, quando, na verdade, é um profundo argumento cinematográfico. A mensagem a ser passada sobre a eternidade do artista, por exemplo, criando obras para gerações futuras, é reiterada incessantemente. Os pulos temporais também não se entendem, embora se justifiquem em suas incoerências. Uma representação singular de um homem que o mundo não enxergou enquanto vivo, mas encontrou sua grandiosidade após o misterioso artista, ainda enigmático, ter passado pelo portal da eternidade.

  • Crítica originalmente publicada em 10 de novembro de 2018 como parte da cobertura do Festival do Rio.

No Portal da Eternidade (At Eternity’s Gate) – EUA, 2018
Direção: Julian Schnabel
Roteiro: Jean-Claude Carrière, Julian Schnabel
Elenco: Willem Dafoe, Rupert Friend, Oscar Isaac, Mads Mikkelsen, Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Niels Arestrup, Anne Consigny, Amira Casar, Vincent Pérez, Lolita Chammah, Stella Schnabel, Vladimir Consigny, Arthur Jacquin, Solal Forte
Duração: 110 min.

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