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Crítica | Noivo Neurótico, Noiva Nervosa

por Ritter Fan
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Jamais gostaria de pertencer a um clube que tivesse alguém como eu como membro.

Os leitores que me perdoem, mas não usarei o título bobalhão em português ao longo desta crítica, pois Annie Hall é tudo menos o que a versão nacional do título deixa entrever. Muito ao contrário, é um dos filmes mais inteligentes já feitos, com tanta informação e diálogos impressionantes em tão pouco tempo que, para sua verdadeira apreciação, a fita precisa ser assistida mais de uma vez, com um intervalo de talvez uma ou no máximo duas semanas. E isso só para começar.

Como Roger Ebert bem salienta em sua crítica, em razão de seu enorme sucesso (levou o Oscar de Melhor Filme no lugar de Star Wars“Prêmios! Eles sempre dão prêmios! Não acredito. Melhor Ditador Fascista: Adolf Hitler.”) e de ser uma virada na carreira de Woody Allen, agora abordando assuntos mais sérios, com uma pegada mais dramática, mas sem perder o tom de comédia, afinal o filme é uma comédia romântica se o leitor gostar de rótulos, “poucos espectadores provavelmente notarão o quanto ele consiste em pessoas falando, simplesmente falando”. E o saudoso Sr. Ebert tem a mais absoluta razão. O filme é uma sucessão de diálogos fotografados por Gordon Willis, vindo da fama de O Poderoso Chefão e de sua continuação, em takes mais longos do que o normal da época contendo tesouros referenciais que são derramados por um Woody Allen elétrico no papel do comediante depressivo e paranoico Alvyn Singer ao longo de seu relacionamento com a personagem do título original, vivida pela sempre bela Diane Keaton.

Allen mostra amadurecimento de conceitos aqui, criando um filme de aparência tão pessoal e próxima a ele próprio que muitos – inclusive críticos de renome – deduzem que se trata de uma obra autobiográfica. Mas o diretor sempre afastou essa conclusão, afirmando categoricamente que Annie Hall não é uma autobiografia, mas sim uma história de amor novaiorquina com elementos retirados de sua vida, algo que realmente faz toda a diferença. Há paralelos, claro, e há situações fáticas como, por exemplo, o sobrenome verdadeiro de Diane Keaton ser Hall e seu apelido ser Annie, além de ela e Allen terem tido um caso anos antes. E há toda a metalinguística do filme, que acaba em um breve encenação da primeira peça teatral de Singer que aborda os acontecimentos que vemos desenrolar no filme. Em outras palavras, a discussão de que é ou não uma autobiografia talvez seja da própria essência do que o filme discute e uma resposta categórica não seja nem mesmo necessária.

De certa forma, o que Allen faz, aqui, parece um filme experimental. E isso fica evidente já na primeira sequência, com Singer olhando para a câmera e conversando com os espectadores sobre o fim de seu relacionamento com Annie. A quarta parede é jogada no lixo ali, bem naquele momento, sem qualquer cerimônia e o espectador, então, já sabe que algo no mínimo diferente o espera. Mas diferente é apenas um dos adjetivos aplicáveis a essa obra-prima de Allen, adjetivo esse que poderia ser acrescentado de brilhante, sensacional e cativante, todos genéricos, tenho consciência, mas perfeitamente aplicáveis á experiência. Voltemos à quarta parede, por exemplo. Não satisfeito em apenas conversar com a plateia, Singer quer nos convencer de seus pontos de vista. Ele é um intelectual solitário, que não parece muito à vontade ao lado de outras pessoas e cujos relacionamentos – já fora casado duas vezes – são sempre problemáticos e normalmente em razão do sexo. Sua conversa com o espectador vai muito além de piscadelas para a tela (Curtindo a Vida Adoidado) ou frases ditas de soslaio em segredo (House of Cards). O que o personagem de Allen faz aqui é sem precedentes e pode muito bem ser exemplificado pela sequência antológica na fila do cinema, com um pseudo-intelectual falando alto e tentando impressionar sua nova namorada com seus conhecimentos sobre o diretor italiano Federico Fellini e sobre os pensamentos do filósofo canadense Marshall McLuhan. Irritado, Singer sai da fila puxando o sujeito para dizer para nós que ele não sabe nada sobre McLuhan, o que leva o falastrão à indignação total, somente para Singer puxá-lo mais para o lado e, de trás de um cartaz, trazer para a cena o próprio McLuhan que, então, confirma que o cara realmente não sabe nada sobre ele. Memorável e de se tirar o chapéu pela coragem narrativa de tragar o espectador literalmente para dentro do filme (o contrário do que Allen faz no também excepcional A Rosa Púrpura do Cairo, aliás).

Mas há mais, muito mais. A montagem não linear da obra, cortesia de Wendy Greene Bricmont  e Ralph Rosenblum, nos mostra diversos momentos diferentes do complicado relacionamento de Singer com Hall, mas nunca ficamos confusos, apesar dos cortes bruscos e sem cerimônia, usados cirurgicamente em momentos-chave do roteiro que discretamente chamam pelo passado e que ganham de Willis filtros diferentes para marcar as transições (reparem nas cores de Nova York, mais escuras, em relação às cores mais estouradas de Los Angeles ou mais sóbrias e evocativas dos anos 40 quando vemos a infância de Singer). O uso de tela dividida, no lugar de ganhar a versão lugar-comum, é trabalhada como elemento funcional de um flashback duplo em particular que contrasta o passado da dupla quando Singer é apresentado à família de Hall e vemos também a família de Singer em situação semelhante, quando ele ainda era criança, com uma tela que não é dividida pela metade, mas sim na proporção de 70-30 (ou algo do gênero) sem que os diálogos de uma parte ou de outra sejam emudecidos. É ver para crer como a sequência realmente funciona. E não posso esquecer da tela dividida “falsa”, com a sequência dos dois em consultórios de psicólogos distintos, com um cenário construído para parecer um truque de câmera. Ou da sequência em animação… Ou da câmera em primeira pessoa no Fusca de Hall… Ou a experiência extra-corporal…

No entanto, sobrepujando todos os brilhantes artifícios narrativos usados de maneira fluida ao longo de toda a produção, há os diálogos e monólogos. O roteiro de Allen é, como já afirmei na abertura da presente crítica, de uma riqueza ímpar, que merece ser destrinchado com sessões repetidas do filme – uma risada em uma piada significa que o espectador perde outra parte igualmente brilhante que é dita como uma metralhadora logo em seguida -, além de lido em separado para estudo profundo. Há tantas referências com tantos significados que qualquer tentativa de fazer um comentário crítico é fútil. Basta ver com Allen escreve o contraste entre Nova York, a cidade que ama (“você não vê que o resto do país olha para Nova York como se fôssemos pornógrafos de esquerda, comunistas, judeus, homossexuais? Eu penso assim de nós algumas vezes e eu vivo aqui.”) e Los Angeles, a cidade que simboliza o fim da arte (“eu não quero me mudar para uma cidade cuja única vantagem cultural é ser possível virar à direita no sinal vermelho”), ou como aborda os judeus (“você é o que a Vovó Hall chamaria de um verdadeiro judeu”) ou como ele vê relacionamentos (“um relacionamento, acho, é como um tubarão. Você sabe? Ele precisa sempre andar para frente ou ele morre. E eu acho que o que temos nas nossas mãos é um tubarão morto”), ou sobre a vida, e eu prometo que é a última citação, mas essa merece destaque:

Eu sinto que a vida é dividida entre o horrível e o miserável. Essas são as duas categorias. Os horríveis são como, não sei, casos terminais, você sabe, e pessoas cegas, aleijadas. Não sei como eles enfrentam a vida. É impressionante para mim. E os miseráveis são todos os demais. Assim, você deve agradecer por ser miserável, pois ser miserável é muita sorte.

Annie Hall é um espetáculo de falsa simplicidade em todos os seus quesitos. Parece uma comédia romântica, mas é muito mais do que isso. Parece um filme comum, mas trabalha técnicas cinematográficas como nenhum outro até então. Há defeitos? Sim, talvez. Mas diante de seu conjunto, nem mesmo consigo me lembrar deles, se existirem. Vejam e revejam e depois revejam de novo. Isso é Cinema. O resto é la-di-da, la-di-da, la la.

Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, EUA – 1977)
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen, Marshall Brickman
Elenco: Woody Allen, Diane Keaton, Tony Roberts, Carol Kane, Paul Simon, Shelley Duvall, Janet Margolin, Colleen Dewhurst, Christopher Walken, Donald Symington
Duração: 93 min.

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