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Crítica | Nosferatu (1922)

por Ritter Fan
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O que eu posso falar sobre essa obra-prima de F.W. Murnau que muita gente muito melhor do que eu já não tenha dito com mais propriedade? Nosferatu é um dos mais importantes filmes já feitos, uma joia cinematográfica que precisa ser assistida por todos e que tem uma história de “origem” tão interessante quanto a obra em si.

Foi pensando no que escrever que eu cheguei à conclusão que não tenho mais nada a acrescentar a quem já viu Nosferatu (deixando claro que estou falando do original, de 1922, não do remake de 1979, de Werner Herzog, que é muito bom, mas que não chega aos pés desse). Ver esse filme é sempre uma experiência fantástica, imbatível, pois o jogo de luz e sombras e design da produção é algo que só mesmo o expressionismo alemão conseguiu produzir e nunca mais ninguém conseguiu repetir o feito com a mesma eficiência. Estou exagerado? Sinceramente creio que não. Marcadas profundamente em minha mente estão minhas primeiras experiências com o movimento no cinema, com filmes como O Estudante de Praga, O Gabinete do Dr. Caligari, O Golem e A Última Gargalhada, este também de Murnau e uma das mais belas obras da Sétima Arte. São filmes que transfixam o espectador – cinéfilo ou não, jovem ou idoso – e apresentam um mundo muito particular, altamente criativo e que funciona particularmente bem em obras de horror, gênero tão mal trabalhado hoje em dia.

Se você é leitor aqui do Plano Crítico e não viu Nosferatu, essa crítica é para você. Uma espécie de teaser da que é de longe (mesmo!) a melhor adaptação de Drácula, a primeira e a obra definitiva do gênero, de Bram Stoker. E você não precisa ser fã do gênero horror ou de filmes de vampiro para admirar o trabalho de Murnau. Basta ser curioso e estar disposto realmente a se enfronhar na estranha, na bizarra, na surreal construção cinematográfica de um dos gênios do meio.

Mas comecemos pela também bizarra – e quase trágica – história por trás da produção. Nosferatu foi a primeira e também única produção da Prana Film, produtora fundada em 1921 por Albin Grau especificamente com o objetivo de fazer um filme de vampiro, pois, reza a lenda, seu pai havia sido um. Mesmo sem obter autorização do espólio de Bram Stoker, que falecera em 1912, Grau encarregou Henrik Galeen, que havia escrito o roteiro de O Golem, de 1920, de escrever um roteiro com base em Drácula. Para tentar evitar uma ação judicial, o Conde Drácula se tornou o Conde Orlok e até mesmo a palavra “vampiro” foi substituída pela que dá nome ao filme, “nosferatu”, palavra de etimologia romena que pode significar “o repugnante” ou “o sujo” ou, até mesmo, “o demônio”. Jonathan Harker é Thomas Hutter e Mina Harker é Ellen Hutter. Além disso, diversos personagens da obra original são eliminados e a ação, apesar de começar na Transilvânia, não migra para a Inglaterra e sim para a Alemanha, na cidade fictícia de Wisborg.

No entanto, Nosferatu é, sem tirar nem por, uma adaptação de Drácula. Está tudo lá e, arrisco dizer, de maneira mais fiel à obra de Bram Stoker do que em qualquer outro filme. Nada do vampiro charmoso que o mundo aprendeu a “gostar” e sim um monstro horroroso, assustador, que representa, na obra de Murnau, a própria Peste Negra, praga de peste bubônica trazida pelos ratos (mais precisamente pelas pulgas dos ratos e outros roedores),  que assolou a Europa do século XIV, matando um terço da população. O lado romântico do vampiro que o Conde Orlok representa não existe em Nosferatu. Há, apenas, medo.

Essas semelhanças, claro, atraíram a ira do Espólio de Bram Stoker que acabou ingressando com uma ação que levou a Prana Film à falência (por isso ela só fez um filme) e ordenou – vejam só! – a destruição de todas as cópias existentes do filme, ordem essa que foi levada à cabo. No entanto, para nossa sorte e profundo alívio, pelo menos uma cópia completa da obra de Murnau já havia sido levada à distribuição fora da Europa e, ao longo dos anos, novas cópias foram feitas, permitindo que essa obra-prima sobrevivesse até os dias de hoje, imortal como o vampiro. Por outro lado, também, a atenção a Nosferatu terminou por sedimentar a carreira de Murnau, que ainda brindaria a Sétima Arte com A Última Gargalhada, Fausto e Aurora, além de outros e migraria para Hollywood.

Como já ficou claro, o filme conta exatamente (ou quase exatamente) a mesma história que o livro de Bram Stoker, mas o que retira de Nosferatu qualquer possibilidade de se afirmar que é “mais um filme de vampiro” é seu design de produção e figurinos do próprio Albin Grau e a fotografia de Fritz Arno Wagner, além da inesquecível atuação de Max Schreck como o Conde Orlok e, claro, a minuciosa batuta de F.W. Murnau. É até difícil destacar o que é mais importante nessa obra-prima que é uma verdadeira confluência de imaginação, criatividade e técnica.

Olhemos, primeiro, para o design de produção e figurino, aí incluída, também, a maquiagem transformadora de Schreck. O que temos é um misto de cenários construídos para o filme – normalmente os interiores – com exteriores fantasmagóricos, mas sem exageros góticos. Vê-se claramente o amor do produtor Grau com o filme, pois ele escolheu locações em pequenas cidades na alemanha, especialmente Wismar e Lübeck para transformá-las no retrato da decadência com a chegada do monstro. As sequências na Transilvânia foram efetivamente filmadas lá, o que empresta um ar genuíno às sequências iniciais.

Os figurinos são eficientes em passar o ar da época da ação, algo como 1830 – em contraste com 1890 do livro – mas é mesmo a roupa do Conde que se sobressai, com seu enorme casaco preto cheio de botões e com mangas curtas e lapela generosa. Não é o visual chamado “clássico” do vampiro, mas é o que inspirou aquilo que hoje vemos comumente por aí, além de ser muito mais aterrorizante do que uma capa esvoaçante com cetim vermelho por dentro. Mas falar do figurino de Orlok sem falar do incrível trabalho de maquiagem é um crime. Max Schreck, ator esguio e alto, ganha a aparência de um morcego humano, a perfeita fusão entre as duas espécies. Acho que nem mesmo Bram Stoker imaginou e, se tivesse visto o filme, reescreveria o livro para inserir essa descrição.

Mas, assim como o figurino nos leva à maquiagem, esta nos leva ao próprio Max Schreck. O ator alemão oriundo do teatro, de carreira sólida só que sem nenhum tipo de brilhantismo – que jamais alcançaria fora da obra de Murnau, na verdade – é um assombro em Nosferatu. Esguio e reservado, tais características foram acentuadas pelas orelhas pontudas, dentes de roedor e unhas compridas, além do já citado sobretudo preto que fez do ator a mais aterrorizante encarnação de Drácula e um dos mais perfeitos monstros do cinema, base de todo o trabalho de Bela Lugosi, Christopher Lee, Frank Langella, Klaus Kinski e Gary Oldman em maior ou menos proporção. A fusão entre homem e animal é levada a cabo por um trabalho introspectivo de Schreck que até mesmo levou à jocosas suposições de que ele seria um vampiro, suposições essas que, em 2000, levou ao filme A Sombra do Vampiro, com John Malkovich no papel de Schreck, que, já adianto, apesar de divertido e gerador de muita “teoria da conspiração”, é completamente fictício (não só em relação a Schreck ser um vampiro, claro, como aos eventos da produção em si).

A fotografia de Fritz Arno Wagner, com o uso generoso de sombras é icônica por si só. É um trabalho que aterroriza pelo que não mostra, pelo que apenas deixa entrever. Quando vemos, vemos primeiro a sombra, sempre se aproximando ameaçadoramente da vítima, seja ela a sombra do próprio Orlok, seja a sombra da noite engolfando a pequena cidade de Wisborg ou a sombra gerada por tochas, dessa vez ameaçando o antagonista. E Murnau constrói em cima desses momentos, usando uma câmera baixa para dar mais imponência e terror à presença de Orlok e também para nos colocar à altura dos horripilantes ratos que infestam a cidade.

Da mesma maneira, Murnau emprega um grande número de efeitos óticos, alguns feitos na própria câmera (aliás, o filme inteiro foi fotografado com apenas uma câmera), com filtros, outros com sobreposição de imagens e outros ainda com stop motion que ajudam a dar os poderes sobrenaturais de Orlok e a assustar o espectador, como no momento em que ele levanta do caixão. Claro que estamos falando de um filme de 1922 e muitos podem até achar engraçados os efeitos simplistas da época, mas é como comparar um Lamborghini a um Fusca (e só uma pista: o Lamborghini não representa os efeitos de hoje…) e não faz nem sentido. Visto só sob a ótica da época em que foi feito, o trabalho de efeitos visuais de Nosferatu é irretocável.

Acho que escrevi demais. Mas poderia escrever muito mais. Se você é daqueles que pulam o texto da crítica e vão logo ao último parágrafo, então fica aqui minha conclusão: Nosferatu é mais assustador do que 98% dos filmes de horror de hoje e um dos exemplares da Sétima Arte mais importantes já feitos. Se não viu, faça um favor a si mesmo e veja. Se já viu e não gostou, veja novamente. Se viu e gostou, veja de maneira ritualística pelo menos uma vez por ano.

Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, Alemanha – 1922)
Direção: F.W. Murnau
Roteiro: Henrik Galeen (baseado em romance de Bram Stoker)
Elenco: Max Schreck, Gustav von Wangenheim, Greta Schröder, Georg H. Schnell, Ruth Landshoff, Gustav Botz, Alexander Granach, John Gottowt, Max Nemetz, Wolfgang Heinz, Albert Venohr
Duração: 94 min.

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