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Crítica | O Abraço da Serpente

por Luiz Santiago
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O Abraço da Serpente é uma viagem antropológica, etnográfica, sociológica, etnobotânica, histórica, mística, geográfica e espiritual por uma parte da Amazônia, tendo como ponto de partida o relato dramatizado (e com algumas licenças poéticas para os eventos históricos relatados) de Theodor Koch-Grunberg e Richard Evans Schultes, cujas expedições na região contribuíram muitíssimo para o conhecimento sobre os povos indígenas do norte do Brasil e da Amazônia venezuelana.

Koch-Grunberg foi um etnologista e explorador alemão cujas principais obras serviram como base documental única sobre os nativos dos rios Xingu, Japurá, Negro e Orinoco. Obras como Começo da Arte na Selva (1902), Dois Anos Entre os Indígenas: Viagens no Noroeste do Brasil (1903/1905) e principalmente De Roraima ao Orinoco: Resultados de uma Viagem no Norte do Brasil e na Venezuela nos anos 1911-1913 trouxeram um complexo olhar para os historiadores a respeito dos povos nativos do Brasil e do norte da América do Sul, cujas lendas e costumes relatados por Grunberg foram utilizados na literatura por Mário de Andrade em seu Macunaíma (1927).

Em O Abraço da Serpente, a viagem final de Grunberg nos é relatada através de uma épica busca pela cura, entrecortada por uma viagem futura, de Richard Evans Schultes, considerado o pai da etnobotânica moderna e que, tendo as publicações de Grunberg  em mãos, tenta refazer os passos do pesquisador para encontrar uma planta lendária com altíssimo poder de cura. A botânica, a biologia, a História e as culturas diferentes dos dois homens se mesclam às de duas eras indígenas, encontrando e lidando com povos e situações que nos espanta, enleva e marca profundamente. Cada viagem, cada pedaço navegado de um rio e cada metro percorrido da mata é dotado de um significado grandioso, resultado da magnífica direção de Ciro Guerra, tanto na forma de guiar o filme quanto na forma de guiar os seus atores e não-atores.

De imediato, a experiência que o filme nos oferece como instrumento de comunicação entre homens da ciência e a natureza é algo para se lembrar para sempre. Poucos filmes conseguiram dialogar tão bem com elementos naturais e trilha sonora mixados organicamente e com cortes, diminuição e aumento de volume na medida certa e sempre que necessário. A cargo de Nascuy Linares, a música não se rendeu à mímica de canções indígenas, mas lançou mão de sombrias formas sinfônicas e misturou o mundo “civilizado” ao “selvagem” também em sua forma sonora. O público tem medo e ao mesmo tempo se maravilha com o que ouve e com o que vê, uma junção de sentidos que se completa com o significado aplicado pelo diretor à mistura de culturas e ao avanço de interesses econômicos do início do século XX, com destaque para os seringueiros e todo o estrago que o Ciclo da Borracha fez à região.

O roteiro de O Abraço da Serpente é tão intenso, que às vezes nos esquecemos que estamos nos primeiros anos da década de 1900. A missão religiosa e o que isso se tornará alguns anos depois nos causa um forte impacto emocional e põe em cena a subtração antropológica da cultura indígena pela catequização, cuja dura crítica vem na segunda parte do filme e traz um Messias louco em um lugar quase infernal. Alguns espectadores podem alegar que esse momento está fora de sincronia com o filme, mas é necessário que o público veja a sequência sob os olhos de um indígena e um homem que medem a aculturação a longo prazo, não necessariamente como um fato consumado e real.

Boa parte do longa nos entrega a natureza e as coisas através de uma percepção espiritual, simbólica ou metafórica e esta sequência do pseudo-Messias, assim como o desfecho de princípio de vida é uma das mais perfeitas representações disso, uma forma de metaforizar e espiritualizar a História, transformando indivíduos animistas/politeístas em loucos cristãos, penitentes, fanáticos e caçadores de uma fé que só lhes trouxe ruínas físicas e culturais. Particularmente, nunca vi o cinema retratar com tanto poder tantas nuances derivadas da colonização cultural na América.

E é quando nós acreditamos que o filme caminha para uma possível estagnação de seu tempo e temas, que tudo se renova e o mundo renasce. O desfecho da obra é um aplaudível esforço conjunto da montagem de Etienne Boussac e da fotografia de David Gallego, que se recusou a fazer um único plano “comum” nesse bloco. Começando pelo ritmo, o encontro do espectador com a lenda de renascimento do indígena (integrado ao Universo) não deve nada à mesma viagem de renascimento cósmico vista em 2001: Uma Odisseia no Espaço; ou à integração espiritual entre homem, luz e natureza vista em A Árvore da Vida ou mesmo das lendas e teorias nas quais Alejandro Jodorowsky se baseou para fazer a viagem mística de renascimento de um corpo após uma longa vivência em A Quintessência – Planeta Difool, a parte final de O Incal.

Vejam que as citações de comparação que faço aqui, inclusive os quadrinhos de Jodorowsky, estão intimamente ligadas ao propósito final das lendas que sustentam O Abraço da Serpente, ou seja, o cumprimento de uma épica missão para encontrar-se a si mesmo e então ver tudo recomeçar sob uma outra égide, um novo olhar, um novo significado. Ainda no caminho das comparações e influências cinematográficas para esta obra, devo dizer que embora não goste de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010) fica claro que o parâmetro espiritual e natural visto ali é um gêmeo de O Abraço da Serpente, guardadas as proporções de contexto dramático, assim como em um outro filme de Weerasethakul, este sim excelente: Mal dos Trópicos (2010).

Finalizado com uma busca ainda sem fim, O Abraço da Serpente serve como uma sessão de experiência sensorial através do cinema. Além da beleza estética e sincronia absoluta entre os setores técnicos, o espectador terá a oportunidade de ver paisagens grandiosas da Amazônia, regiões onde não se filmava nada há pelo menos 30 anos. Trata-se de um filme sensível e bastante rico em conteúdo para se ver com os olhos e com a alma, para sentir e para servir de reflexão sobre duas coisas bastantes diferentes: os impactos humanos, culturais, naturais e antropológicos da colonização e catequização e a forma como nós, indivíduos descendentes dessa tradição, lidamos com isso, em qualquer instância imaginável.

O Abraço da Serpente (El abrazo de la serpiente) — Colômbia, Venezuela, Argentina, 2015
Direção: Ciro Guerra
Roteiro: Ciro Guerra, Jacques Toulemonde Vidal (inspirado nos trabalhos de Theodor Koch-Grunberg e Richard Evans Schultes).
Elenco: Nilbio Torres, Jan Bijvoet, Antonio Bolivar, Brionne Davis, Yauenkü Migue, Nicolás Cancino, Luigi Sciamanna
Duração: 125 min.

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