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Crítica | O Amor é Mais Frio Que a Morte

por Luiz Santiago
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Fassbinder dedica O Amor é Mais Frio Que a Morte para Claude Chabrol, Eric Rohmer e Jean-Marie Straub, tendo ainda um agradecimento especial para este último, por sua contribuição nas filmagens de uma cena do filme em particular. Fassbinder estreava então o seu primeiro longa-metragem com uma clara homenagem à Nouvelle Vague, influência já percebida em diversos graus nos curtas O Vagabundo da Cidade e O Pequeno Caos e que agora ganhava uma forma maior e mais delineada, apesar da insegurança narrativa do jovem diretor de 23 anos.

O roteiro do filme, escrito pelo próprio Fassbinder, dá início a uma trilogia que ele faria sobre filmes de gângster, completada por Os Deuses da Peste (1969) e O Soldado Americano (1970). Em cena, temos três personagens principais, Franz (Fassbinder), Bruno (Ulli Lommel) e Joana (Hanna Schygulla). Envolvidos com roubos, assassinatos e prostituição, o triângulo quase anti-libidinoso tenta se encontrar como grupo após uma ruptura causada pela prisão de Franz e pela chegada de Bruno como um amigo especial, frio e cruel, um personagem que dá o tom da trama e muito simbolicamente causa o seu final.

É quase impossível não lembrar dos filmes do diretores franceses da Nouvelle Vague, especialmente em seus exercícios mais crus e formais, quase teóricos. Se não fosse pela forte influência teatral e extrema preocupação na criação de uma “atmosfera singular de cena” ou composição única de seus planos, Fassbinder teria uma proximidade estética quase siamesa com Godard. Todavia, o diretor alemão se afasta dos símbolos franceses que tanto admirava e constrói, a partir deste primeiro passo em longas-metragens, uma estrutura não só visual mas também narrativa que denuncia o aparecimento de algo novo, um misto de palco-e-câmera filmado com esmero quase neurótico.

Ao longo do cotidiano do trio criminoso, o diretor constrói e desconstrói a opinião do público sem renunciar aos princípios básicos da psicologia de cada um. Assim, Bruno não ganha ares humanos no roteiro e, apesar de sua extrema simpatia, jamais perde a abordagem próxima ao asco dada a ele desde o início (há uma cena em que particularmente sentimos nojo do personagem, que é quando ele contempla com expressão de êxtase mudo um cliente de Joana ser espancado largamente por Franz); e nem Franz ou Joana são absolvidos por terem uma espécie de cumplicidade amorosa nada convencional.

Fica nas entrelinhas que cada um dos três adota a vida de perigo em que vivem simplesmente para tentarem se sentir vivos, testarem qualquer resquício de humanidade que ainda exista neles, mesmo que para isso precisem ultrapassar a fronteira da maldade de forma banal e indiferente. Talvez a traição e a sujeição ao “amor frio” do título seja o produto do longa em si, aplicado não só em relação a alguém mas em relação ao próprio indivíduo. Há um espírito de destruição em conjunto, pontuado por um desprezo à sociedade e suas regras que assume a liderança do grupo do início ao fim, e esse ingrediente é a chave de ouro para que possamos compreender O Amor é Mais Frio Que a Morte não só como um filme sobre complexas relações pessoais de personagens à margem mas também a posição de desprezo e, na maior parte das vezes, muda, em relação ao seu ambiente social.

Através de planos em sua maioria longos, compostos quase todos em perfeito equilíbrio e simetria, com componentes visuais simples mas muito significativos (como os óculos escuros do policial de Psicose) a fotografia de luz dura com forte contraste do branco e uma direção de arte limpa, com econômico desenho de interiores, especialmente para os cômodos que pertenciam ao trio protagonista, O Amor é Mais Frio Que a Morte representa uma “parte sub” da Alemanha que não só tinha aprendido a viver de migalhas como não tinha nenhum escrúpulo de agir como predadores, mesmo que a presa em questão fosse morta apenas por um capricho de momento. Ao som da pontual e excelente trilha sonora de Peer Raben e Christian Hohoff, o longa se segura muito bem, mesmo com o seu início claudicante e seu final oportunamente abrupto. Uma reticência muito bem-vinda para um tipo de história que, como sabemos, nunca acaba de verdade.

O Amor é Mais Frio Que a Morte (Liebe ist kälter als der Tod) – Alemanha Ocidental, 1969
Direção:
Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder
Elenco: Rainer Werner Fassbinder, Ulli Lommel, Hanna Schygulla, Katrin Schaake, Liz Söllner, Gisela Otto, Ursula Strätz
Duração: 88 min.

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