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Crítica | O Anticristo

por Marcelo Sobrinho
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Deixa que eu chore meu destino cruel” canta a princesa Almirena, prisioneira da feiticeira Armida, na ária Laschia Ch’io Pianga, de Rinaldo, ópera do alemão Georg Friedrich Händel. É com esse lindo momento operístico que Lars von Trier constrói o prólogo de O Anticristo, seu filme mais difícil de assistir e que mais criou controvérsias na época de seu lançamento. Em um hiper slow motion visceral e com uma deslumbrante fotografia em preto e branco, o dinamarquês mostra o fato que origina o luto profundo de um casal. Enquanto eles fazem sexo no chuveiro, o filho sai do berço e cai da janela do quarto. A princesa de Händel chora seu destino cruel tal como a personagem inominada de Lars von Trier. Com enfoque no feminino, a obra chegou a ser acusada de misoginia e partiu a crítica de Cannes ao meio. Mas o filme do polêmico diretor é muito mais complexo do que isso e trabalha com contraditórios todo o tempo, não permitindo interpretações assim tão canhestras.

O grande tema de O Anticristo é o sentimento de culpa presente na sexualidade feminina e, por derivação, na própria maternidade. Não é à toa que a personagem de O Anticristo faz sexo enquanto seu filho morre. Lars von Trier expõe, ao mesmo tempo e de forma interligada, a culpa que se origina na mulher e na mãe. Para superar o luto e a culpa, Ele (Willem Dafoe) sugere a Ela (Charlotte Gainsbourg) irem para o local que mais a aterrorizasse e ela escolhe uma floresta, de onde guardava recordações do filho morto. Chamam o local de Éden e, tal como na história bíblica, são os únicos seres humanos a habitá-lo. Éden torna-se um nome altamente pertinente àquela floresta densa, tétrica e pecaminosa em toda a sua atmosfera. É no Éden bíblico que o primeiro pecado humano é cometido e quem o comete é a mulher. Cabe a Eva retirar o fruto proibido, prová-lo e oferecê-lo ao marido. Assim, a personagem de Gainsbourg, sorumbática e culpada, remete a Eva, a mulher que cometeu o pecado original e introduziu a ideia de culpa à história humana.

Há, no filme, diversas chaves para entender esse sentimento da esposa. Ela diz que sabia que o filho saía de seu berço no meio da noite (algo que o marido desconhecia) e esse era um ponto nevrálgico de seu tormento. Novamente, o dinamarquês trata da ideia de culpabilidade incidindo pesadamente sobre a mulher. O marido também descobre um grande desvio em seu cuidado com o filho e essa revelação é um momento central na transformação da personagem. Já o sentimento de culpa sobre sua sexualidade atinge o clímax quando ela mutila seu clitóris com uma tesoura e, assim, elimina de forma autopunitiva o seu principal órgão de prazer sexual. Quando, no prólogo, a princesa Almirena canta a sua dor de prisioneira, ela expressa algo além da privação do amor de Rinaldo. Almirena e a mulher de O Anticristo compartilham uma dor bastante feminina – a da privação do próprio desejo. O filme de Lars von Trier trabalha com muitas metáforas e referências, que não devem ser perdidas.

Nesse contexto, acho obrigatório comentar que a transformação da mulher dentro da floresta alude às bruxas medievais. Ela mesma fala de suas “irmãs”, em uma referência bastante clara a elas. Uma figura arquetípica comumente associada à bruxa da Idade Média é a de uma mulher bela, voluptuosa e sedutora, que despertava paixões em padres e em homens casados. Muitas delas também cumpriam o papel social de curandeiras e parteiras, lidando intimamente com o nascimento, mas também com abortos, mortes neonatais e toda sorte de problemas envolvidos. A conversão da esposa em uma bruxa (sem recorrer a nenhum maneirismo óbvio ou caricatura) é mais uma ideia feliz que Lars von Trier emprega em seu filme, já que a bruxa medieval encarna a mulher plenamente sexualizada e que trata da maternidade como um processo imperfeito e problemático. É isso que vejo na mulher metamorfoseada, que surge na segunda metade da obra e que assusta pela malícia e rudeza que assume.

Lars von Trier faz um trabalho estonteante com as imagens – poderosas, provocadoras e asfixiantes. O slow motion sempre ressurge como recurso de dramaticidade e é utilizado com o mesmo primor de Melancolia, filme do cineasta nórdico que sucede a O Anticristo. A câmera nas mãos, uma marca do diretor em tantos filmes, também é dominante aqui. Mas a fotografia é, tecnicamente, o que há de mais acachapante na obra. O diretor de fotografia Anthony Dod Mantle faz o que é, para mim, o melhor trabalho nesse quesito em toda a filmografia de Lars von Trier e digo isso sem nenhum medo de exagerar. Não há trégua em seus tons sombrios e esfumaçados, que garantem grande parte da atmosfera infernal do filme. Quanto às atuações, Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg (uma das minhas atrizes prediletas) fazem um trabalho figadal, mantendo o alto nível mesmo nas cenas mais exigentes e horripilantes.

Nada poderia dar errado no filme de Lars von Trier, certo? Neste ponto, preciso falar também do que vejo de problemas na obra. A mulher, apresentada como aquela que carrega a consciência do pecado e da culpa, é essencialmente a mulher do Cristianismo. O argumento que identifico no filme é de que a metamorfose que ela sofre a liberta desse lugar que ocupa historicamente. O dinamarquês resgata o feminino como a Eva novamente livre para provar do fruto proibido. Uma das melhores cenas nesse ponto, plasticamente maravilhosa, mostra a esposa seduzindo o marido para fazerem sexo sob uma árvore (uma referência a Eva oferecendo o fruto, representado no filme como o sexo, para Adão). Contudo, a mão excessivamente pesada do diretor em praticamente toda a segunda metade da obra quase compromete esse argumento, que vinha sendo construído em um ritmo quase perfeito.

Não há qualquer problema em utilizar cenas de violência explícita como recurso discursivo e não é novidade uma cena de mutilação genital no cinema (quem assistiu ao irretocável Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman, sabe disso). Mas acho desproporcional a enorme insistência do diretor em criar cenas de tortura, mutilação, masturbação com ejaculação de sangue e afins, sem nuances nem sutilezas. O conceito de Natureza que ele desenvolve em relação ao feminino é o da mulher que respeita o desejo de seu corpo, opta pelo orgasmo e assume seus instintos negativos em relação ao filho, sem que a culpa a consuma e a destrua. Porém, o dinamarquês transforma essa ideia em uma violência infindável e grosseira que a mulher pratica contra o marido. Em vez de gerar a compreensão de seu conceito, brilhante por si só, Lars von Trier provoca asco e confusão na construção de seu argumento. Por isso, tantas acusações de misoginia ao seu filme. Uma frase bastante conhecida de Hegel resume bem: “Quem exagera o argumento prejudica a causa”.

O Anticristo é um dos filmes mais complicados e indigestos de todos os tempos e seguirá suscitando debates. Erra o tom em diversos momentos, mas é absolutamente brilhante em outros (inclusive em seu epílogo, que desmancha definitivamente qualquer possível acusação de misoginia). Lars von Trier é uma das únicas figuras no cinema atual com coragem para fazer um filme dessa natureza, enfrentando a resistência dos críticos e toda forma de patrulha moralista. Pode não ser o seu melhor trabalho, mas não é gratuito e tudo está lá por algum motivo, mesmo que com peso demais. Um estudo filosófico sobre a mulher e o Cristianismo em que tudo é possível, exceto sair ileso dessa experiência.

O Anticristo (Antichrist) – Dinamarca, 2009
Direção: Lars von Trier
Roteiro: Lars von Trier
Elenco: Charlotte Gainsbourg, Willem Dafoe, Storm Acheche Sahlstrom
Duração: 112 minutos

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