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Crítica | O Batedor de Carteiras (1959)

por Guilherme Almeida
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Robert Bresson não faz cinema. Nas suas famosas Notes sur le cinématographe, escritos estéticos e filosóficos dispostos em forma fragmentária, ao modo de aforismos, o diretor francês define sua arte como “cinematógrafo”, termo que remete à época dos irmãos Lumière, atestando seu pertencimento a uma tradição documental e separando sua produção daquelas ordinariamente cinematográficas, associadas ao entretenimento barato, ao gosto pelo espetáculo ou ao “teatro filmado”. Bresson quer uma arte pura e específica, não preocupada com a criação de efeitos rasos, mas conectada com uma experiência de profundidade espiritual e moral; não é gratuita, portanto, a aproximação corrente entre sua filmografia e um certo jansenismo aplicado à forma estética, criando artefatos minimalistas, austeros e econômicos.

A obra do gênio francês é formada por treze longas que guardam entre si uma coerência e coesão estilísticas quase sem precedentes, treze longas a atestar a lúcida visão de mundo de um intelectual que sempre manejou os grandes temas, como a existência de Deus, a moral, o amor, a liberdade humana. Cada filme como que esgaravata mais profundamente a psiquê de um diretor que consegue tangenciar, com talento raro, desde o pessimismo mais profundo até a esperança mais tocante, do ateísmo mais cético à vivência como bênção e Graça divina. Cada filme como que retoma as referências artísticas ou biográficas de seu artífice, colocando em cena seja o apreço pela pintura ou literatura, seja o trauma da prisão na Segunda Guerra Mundial, seja ainda a percepção efetiva do desencanto em uma sociedade com valores em crise.

A experiência da tensão moral, frequentemente retomada pelo cineasta, encontre um dos seus apogeus naquele que é talvez seu filme mais conhecido e acessível. O Batedor de Carteiras (1959) foi livremente baseado no Crime e Castigo de Dostoiévski, encetando o mesmo dilema problematizado pelo diretor russo: num mundo em que a abóbada celeste se rompe, a certeza da existência divina começa a ser relativizada, o niilismo pode vir à tona como sucedâneo da certeza dogmática, haverá ainda para a moral sustentáculo seguro? Se a moralidade for um mero acordo convencional, se, como dizem as bruxas de Macbeth, “O Bem, o Mal- é tudo igual”, porque não poderíamos fugir da legalidade instituída e buscar o benefício próprio, mesmo que à revelia da integridade alheia?

Tomado por essas questões, Michel (Martin LaSalle) decide afrontar as condições de sociabilidade instauradas, tornando-se um contumaz batedor de carteiras. Sua lógica é a mesma daquela defendida por Raskólnikov, protagonista do livro russo. Em ambos os casos, a contravenção é vista como gesto superior de um homem que consegue ir para além da massa de cidadãos ordeiros que creem, sem mediações críticas, nas normas sociais transmitidas arbitrariamente. Os dois são verdadeiros “personagens-ideia”, ou seja, encontram sua força motriz na persecução de uma tese que perfaz um diagnóstico filosófico profundo.

O modo como Bresson filma os roubos perpetrados pelo personagem principal é simplesmente encantador. Para se afastar da espacialidade totalizante do teatro, ele preferia os primeiros e primeiríssimos plano, recusando enquadramentos muito amplos; esta escolha estética implica, especificamente no Batedor de Carteiras, o enfoque no gesto habilidoso das mãos que solapam bens alheios, criando uma movimentação refinada, próxima a um ballet. A preferência do diretor pela metonímia ou elipse visual faz com que visualizemos os detalhes, sem quase nunca termos uma referência do todo, o que ajuda a criar a impressão de dinamismo e desnorteamento nas cenas de roubo.

Em termos da configuração psicológicas dos personagens, talvez o que mais chama atenção é a apatia, sobretudo a do protagonista, e é aqui que o longa de Bresson mais se afasta da febricitante escritura dostoiévskiana. Enquanto Raskolnikov entoa monólogos excitantes, cheios de pathos e violência, como se de sua fala dependesse sua vida, Michel é mais marcado pelo laconismo, numa postura de opacidade que quase lembra os personagens absurdos de Albert Camus. Não conseguimos compreender totalmente as motivações do batedor de carteiras, tampouco suas reais angústias. Tudo se dá com uma notável dureza de estilo, própria ao diretor francês, empenhado em esvaziar a dramaticidade do enredo.

Para o efeito de neutralização do arco dramático, contribuem as atuações no mínimo peculiares. Sabe-se que Bresson não gostava de atores profissionais, mas de “modelos” reais, não acostumados à ficcionalização do comportamento, de modo que essa escolha está de acordo com seu projeto estético de afastamento em relação à lógica do espetáculo. Se é possível notar momentos de “falha” de interpretação, surgem, no entanto, momentos de grande autenticidade, apenas alcançáveis pelo método antiteatral encabeçado pelo diretor, conhecido por repetir inúmeras vezes a mesma tomada em busca de uma inflexão específica. Outro dado que potencializa a austeridade do estilo é a recusa da trilha sonora (não completa, já que ela aparece em alguns momentos, muito pontualmente), a preferência por ruídos diegéticos ou mesmo por momentos sem som. O próprio Bresson dizia que “o cinema sonoro inventou o silêncio”, apontando para a possibilidade de usos extremamente potentes da quietude.

Em Diário de um Pároco de Aldeia (1950), baseado em obra de Georges Bernanos, todo o sofrimento vivido era superado, ao fim, pelo poder redentor da graça divina; em O Dinheiro (1983), inspirado em conto de Tolstói, o capital mina por dentro a saúde das relações intersubjetivas. O filme em análise parece estar em algum ponto entre esses extremos existenciais. Michel, por certo, não é o pároco decente que vive a vida como ato de fé; ao mesmo tempo, não pode ser reduzido à brutalização, já que o amor acaba por salvá-lo. Seu encontro com Jeanne (Marika Green), a paixão entre os dois, insufla sentido numa vida que, até então, poderia muito bem ser confundida com a de Mersault. É como se Michel, preso depois de uma emboscada tramada pelo investigador de polícia (Jean Pélégri), ao ver-se atrás das grades mas frente a frente com sua paixão, não sentisse o peso dos grilhões; preso pela lei, solto para a vida, enquadrado pelas normas, mas liberto, enfim.

Pode-se mesmo vislumbrar uma consciência transcendental nas entrelinhas da trajetória do ladrão que se apaixona. Antes ele dissera, em tom de chacota, que acreditava em Deus, “mas por três minutos”; antes, ele atravessaria sem qualquer escrúpulo as barreiras de conduta que lhe fossem impostas, tudo em nome de sua pretensa superioridade intelectual e aversão às regras de manada. Em Jeanne, Michel encontra o sentido que faltava, mas o fato interessante é que o vício pretérito é visto como passo necessário, percurso incontornável, sem os quais a reconciliação final não seria lograda: sob as linhas tortas, a rota certa. Predestinação divina e caminho próprio, determinismo e livre-arbítrio como faces da mesma moeda.

O Batedor de Carteiras é um espetáculo, mas não no sentido que Robert Bresson tanto repudiava. Vemos uma concatenação medida de todas as instâncias narrativas, criando-se a impressão genuína de que este não é um filme comum. O bailar das mãos velozes, o pano de fundo filosófico diretamente tomado de Crime e Castigo mas ressignificado segundo os próprios termos do diretor, a austeridade da direção, a economia da construção dramática- tudo está no seu lugar, numa conformação irretocável. As críticas de Bresson ao cinema é o que de mais cinematográfico pode haver.

O Batedor de Carteiras (Pickpocket)- França, 1959.
Direção: Robert Bresson
Roteiro: Robert Bresson
Elenco: Martin LaSalle, Marika Green, Jean Pélégri, Dolly Scal, Pierre Leymarie, Kassagi, Pierre Étaix, César Gategnno
Duração: 76 min.

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