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Crítica | O Comerciante das Quatro Estações

por Luiz Santiago
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O Comerciante das Quatro Estações, também conhecido como O Mercador das Quatro Estações, estreou na Alemanha Ocidental em 4 de novembro de 1971, quando Fassbinder já havia tido o revolucionário contato com a filmografia de Douglas Sirk. A partir deste momento de sua carreira, vemos um progressivo (mas nunca total) distanciamento em relação ao Antiteatro, como se existisse uma ponte artística entre os longas de abertura e fechamento daquele período – O Amor é Mais Frio que a Morte (1969) e Precauções Diante de uma Prostituta Santa (1971) – e este marco estilístico que se tornou O Comerciante das Quatro Estações, obra que serviu como porta de entrada para os melodramas distanciados do diretor.

Considerado superestimado por muitos cinéfilos, este primeiro sucesso comercial de Fassbinder merece, no mínimo, uma atenção redobrada de todos aqueles que desejam analisar sua filmografia com clareza e honestidade.

A trama do comerciante Hans Epp (excelente interpretação de Hans Hirschmüller) torna-se o retrato definitivo do personagem fassbinderiano fracassado, o homem humilhado pela família desde a juventude, maltratado pelos amigos e mal visto por quase todos; o humano condenado à desgraça, independente do que possa fazer. Com este roteiro Fassbinder definiria o arquétipo de seus homens sofredores (ele já havia sido ensaiado algo nesse sentido em Por Que Deu a Louca no Sr. R?) e também lançaria a semente para suas mulheres sofredoras através da atriz Irm Hermann, no papel da esposa do comerciante.

Porém, mais do que fincar as bases dramáticas de sua fase melodramática, Fassbinder dá um novo rumo para seu estilo de fazer cinema em O Comerciante das Quatro Estações. É possível ver as influências de Jean-Luc Godard e Jean-Marie Straub diluídas na elegância clássica ainda tímida vinda de Douglas Sirk, especialmente de seu Palavras ao Vento, o filme que Fassbinder quis homenagear aqui de alguma forma.

Enquanto observamos a brutalidade de Epp em relação a esposa, o desprezo que tem à filha, a defesa crítica que sempre encontra em sua irmã Anna e o desdém de sua família para consigo, percebemos a câmera de Dietrich Lohmann fazer troça do protagonista e do espectador, criando situações irônicas dentro do próprio plano-sequência (muitas vezes contrariando a seriedade do roteiro), abusando do zoom, explorando o contracampo e dando novos significados aos cenários.

As peras, a ameixas, o casamento, a família, a prostituição, a honra, tudo passa a ter um valor ou é colocado à venda, seja por um preço monetário, seja por um preço moral. O “sacrifício” feito por Epp, ao final do filme, é o contracheque de toda sua vida pautada em agradar aos outros, pontuada pela agressão ou desprezo aos mais fracos e massacrada pelo sofrimento vindo de ambos os lados. O único caminho para a paz, para a salvação pessoal do personagem, só poderia ser a morte, algo que ele tinha ciência desde o evento ocorrido em sua época de Legião Estrangeira, no Marrocos, em 1947.

Fassbinder e Thea Eymèsz deixam de lado a montagem em blocos temáticos quase independentes (modelo que atrapalhou bastante filmes como Rio das Mortes e Pioneiros em Ingolstadt) para firmarem pé em uma linha narrativa com foco bem definido, trabalhando dualidade, continuação e complemento, mesmo no caso dos excelentes flashbacks, onde vemos Epp com a mesma cara, corpo e persona humilhada em contraste com sua mãe, irmã e o amor de sua vida, muitos anos mais novos. Cada um desses momentos do passado ganham uma tonalidade fotográfica diferente (a ideia das quatro estações) e, ao se relacionarem com o presente, afetam muito mais ao comerciante do que às pessoas ao seu redor. Ele é o único que parece já ter nascido velho e o único que involui, culminando em um estágio depressivo e em algo que poderíamos classificar como um tipo de suicídio ou eutanásia…

O Comerciante das Quatro Estações é um filme de final seco, abrupto e moralmente desagradável. Ele afeta o especador (alguns, negativamente) pelo desprezo ao cadáver recém enterrado e pela objetividade quase prostituída, interesseira e conveniente que a vida da família toma a partir daquele momento fúnebre. O “produto familiar” é oferecido e aceito com um simples “ok”, como se fosse um objeto barato e desajeitado que, para impressionar as visitas, alguém aceita ter na sala de casa. Fassbinder fecha o ciclo iniciando uma nova fase — uma fase que não veremos, mas que temos indícios o suficiente para intuir com segurança como será.

O Comerciante das Quatro Estações (Händler der vier Jahreszeiten) – Alemanha Ocidental, 1971
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder
Elenco: Hans Hirschmüller, Irm Hermann, Hanna Schygulla, Andrea Schober, Gusti Kreissl, Klaus Löwitsch, Karl Scheydt, Ingrid Caven, Kurt Raab, Heide Simon, Peter Chatel
Duração: 88 min.

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