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Crítica | O Diário da Esperança

por Gabriel Tukunaga
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A reação humana diante situações adversas sempre foi um objeto de curiosidade no mundo pós-moderno. O século XX, em especial, foi um palco perfeito para esse estudo. Da Guerra Total, como costumava definir Eric Hobsbawm, inaugurada em 1914, até os recentes conflitos provenientes da Guerra Fria: o período marcado por esses eventos é imprescindível não somente para a compreensão de nossa sociedade contemporânea e dos processos históricos, como também para um estudo da razão humana e do nosso psicológico nessas situações hostis.

O Diário da Esperança, longa-metragem húngaro de János Szász, segue uma linha semelhante àquela adotada pelo renascido cinema do leste europeu: a guerra é abordada como algo desprezível e atroz, capaz de despertar os piores pensamentos e ações do ser humano, provando que talvez Hobbes não estivesse errado quando disse que o “homem é o lobo do homem”. É interessante observar que, assim como outros filmes recentes do leste europeu, O Diário da Esperança tenta adotar uma neutralidade em relação aos lados da guerra. Enquanto muitas películas da indústria insistem em remoer alguma convicção ideológica e ficar reforçando a existência de um lado do “bem” e outro do “mal”, outros — como o caso deste de Szász — retratam a guerra apenas pelo o que ela de fato é: cruel para todos os lados, em especial para aqueles que não possuem o poder.

Ambientado no fim da Segunda Guerra Mundial, O Diário da Esperança narra a história de dois irmãos gêmeos (András Gyémánt, Laszlo Gyémánt), que têm suas vidas mudadas radicalmente após serem deixados pela mãe (Gyöngyvér Bognár) aos cuidados da avó (Piroska Molnár). Talvez “cuidados” não seja a palavra mais adequada. A relação da Mãe com a Avó não foi explorada na obra, porém nos é confinado que o afastamento entre as duas era grande, a ponto de uma nem saber que possuía netos. Isso é o suficiente para que a personagem interpretada por Piroska Molnár criasse uma espécie de repulsão natural pelos gêmeos. Espancados diariamente e obrigados a trabalhar para receberem a comida e moradia, a relação entre os irmãos fica cada vez mais estreita; e eles logo percebem que tem somente um ao outro. Confinados em uma espécie de diário que ganharam do pai para que registrassem tudo que acontecessem com eles, a hostilidade da guerra é logo apreendida pelas crianças.

É relevante notar alguns pontos que, sobrepujando o enredo, contribuem enormemente para a construção de um ambiente ultrajante. Um aspecto que chama a atenção é o de que as personagens não têm nome. Ao mesmo tempo em que isso reforça e generaliza a situação na qual se passa o ocorrido, também levanta outra interessante questão: quem somos nós diante de uma guerra em que a morte e os mortos são tratados como algo ordinário? Qual importância é dada à humanidade em uma carnificina como a retratada? A partir de que momento nós deixamos de perder nossas essências para nos tornarmos ‘ninguéns’? Nossos individualismos acabam sendo desmantelados, e somos reduzidos aos nossos ofícios; e não mais pessoas com suas peculiaridades. A noção de banalização é acrescida com a cautela em evitar mencionar lugares específicos e o tempo. Para os gêmeos, por sinal, a sistematização cronológica só passa a ter sentido quando ainda nutriam esperanças de rever a mãe. Após tal expectativa ser destituída, a contagem do tempo passa a não ter mais fundamento para os irmãos.

A hostilidade da guerra ainda é corroborada por duas particularidades elogiáveis: a fotografia e a atuação do reduto elenco principal. A ambientação, apesar de não ser o foco da película, não pode deixar de ser mencionada. As belas paisagens típicas das regiões rurais da Europa obviamente não ficam de fora. Todavia, são contrapostas por cenas com um enredo pesado e a feição carregada dos atores, o que colabora no desenvolvimento da concepção de que a guerra provoca destruições — que não são somente físicas. A atuação das personagens principais é sensacional. A entrega de Piroska Molnár como a Avó provoca no telespectador tanto a sensação de raiva (é inevitável não sentir ódio dela em algum momento) quanto de compaixão pela mulher, em certo ponto do filme. Já András e Laszlo Gyémánt, ambos estreantes no cinema, dão uma performance que consegue transmitir a transformação dos gêmeos desde o momento em que foram deixados pela mãe até o desfecho da película. A falta de expressão dos irmãos pode incomodar em alguns momentos, entretanto é exatamente isso que auxilia a proporcionar o diferencial de O Diário da Esperança. As personagens coadjuvantes também podem ser uma particularidade que, de fato é inquietante. Pouco exploradas, elas parecem totalmente descartáveis, na medida em que, uma vez que seu papel na produção parece ter sido cumprido, o roteiro dá um jeito de tirá-las da trama.

Produções relacionadas à Segunda Guerra Mundial muito provavelmente são as vistas com mais frequência na categoria de filmes históricos. Retratar a perspectiva infantil nelas completa o necessário para um roteiro que virou tipicamente piegas. A Vida é Bela (1997), O Menino do Pijama Listrado (2008), A Menina que Roubava Livros (2013)… Os exemplos são incessantes. A escolha da visão infantil tanto se dá pelo apelo que tal predileção certamente causará ao público como pela possibilidade de uma visão ingênua, pueril, romantizada. E é exatamente nesse ponto que está o trunfo de O Diário da Esperança. A comoção acerca da situação dos gêmeos e a relação deles com a Avó é inevitável, contudo não é central nem a intenção do diretor. As ações dos dois meninos estão longe de demonstrar um ponto de vista romantizado sobre o que a guerra pode fazer com um ser humano, com uma criança.

Convivendo diariamente com a violência, a maneira que os irmãos encontraram de sobreviver a ela foi acostumando-se. Além da agressão — tanto física quanto verbal — que sofriam de terceiros, eles começaram a se agredirem. Em um dos diálogos com o padre (que, por sinal, são um ponto alto do filme) eles dizem que, apesar de não gostarem da dor, objetivam vencê-la, assim como o frio e a fome. Os gêmeos são crianças que não possuem exemplo nenhum em sua vida: sem pai, sem mãe, com uma avó que os despreza e inseridos em uma sociedade doente que, apesar de se dizer cristã e cumpridora do bem, peca, fere radicalmente os 10 mandamentos e exibe uma hipocrisia exorbitante. E é exatamente nessas particularidades que irão se espelhar os protagonistas de O Diário da Esperança. A questão extremamente pertinente que deve ser levantada é: quais as consequências da violência extrema para a formação de um jovem, de uma criança que não possui nenhuma perspectiva de vida e de futuro? Conquanto esse tópico permeie com força na produção de Szász, fica uma reflexão extremamente contemporânea que se aplica à nossa vida urbana — especialmente das classes subalternas que convivem com a violência diária.

O Diário da Esperança é um exemplo do poder e importância dos filmes históricos, mesmo que não retratem com total fidelidade os acontecimentos. Analisar os processos pelos quais passamos é importante não somente para evitar que os erros do passado se repitam (neste caso, em uma escala global), como também para compreender as relações sociais estabelecidas em nosso presente. A contribuição do cinema “estrangeiro” (aquele que não é proveniente dos Estados Unidos) mostra-se, da mesma forma, cada vez mais relevante tanto para a Arte como também para nossa coletividade enquanto cidadãos. A Guerra Total pode ter acabado, contudo os desafios da psique humana parecem os mesmos, e necessitam ser trespassados.

O Diário da Esperança (A nagy Füzet) — Hungria, 2013
Direção: János Szász
Roteiro: András Szekér, Tom Abrams, János Szász (baseado no livro escrito por Ágota Kristóf)
Elenco: László Gyémánt, András Gyémánt, Piroska Molnár, Ulrich Thomsen, Ulrich Matthes, Gyöngyvér Bognár, Sabin Tambrea, Péter Andorai, Diána Kiss, Orsolya Tóth, Enikö Börcsök, János Derzsi, Lajos Kovács, András Réthelyi, Krisztián Kovács
Duração: 112 min

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