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Crítica | O Discurso do Rei

por Iann Jeliel
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Vencedor do Oscar de melhor filme em 2010, O Discurso do Rei certamente está entre os representantes desse título que mais corroboram para uma tipificação estereotipada de filmes que a Academia costuma premiar. É um filme certinho, tematicamente universal, mas aglutinado em um ambiente elitista, nobre, com o pretexto de humanizar essas figuras tão distantes de dificuldades comuns e banais de modo a soarem facilmente relacionáveis. É também uma história de redenção de época, ou seja, que permite grandes trabalhos de decupagem técnica em elementos separados para compor dentro de uma máxima fidelidade a reconstrução do período de um modo agradável.

A fotografia, a direção de arte, os figurinos, a maquiagem, a trilha sonora, é tudo pensado nesse sentido tecnicista, com um virtuosismo retilíneo, visando apenas as indicações nos termos em separado, mas nunca pensando no que juntos eles têm a oferecer para a potencialização dramática da narrativa. Olhar o filme por esse lado é a opção mais evidente e limitadora, para o bom e para o mau sentido. No bom se torna um filme facilmente gostável, pois as camadas dramáticas sempre serão mastigadinhas ao público, lobotomizando seu cérebro a pensar que não gostar o torna uma espécie de cúmplice, culpando por não corresponder eticamente ao exercício de empatia. No mau esse apelo de correspondência à moralidade junto da decupagem calculadinha o prende no rótulo de oscar bait, e automaticamente a experiência se torna dependente de comparações ou prateleiras que ele merece ou não merece estar.

Portanto, apesar de realmente não conseguir enxergar grandes qualificações em termos dramáticos, uso o conceito de “morte ao autor” para propor uma visão que agregue um novo e melhor modo de se enxergar o filme: como uma comédia sobre a realeza. Sim, eu sei, é uma ideia que mesmo ignorando muitos fatores não faz amplo sentido, mas ao menos fortalece o ponto mais forte do filme: o humor. A intenção de Tom Hooper com ele é calcar somente em um pressuposto de leveza a encenação dramática. Quando o filme permite a você rir do protagonista e de sua situação, ele o convida a ser íntegro no processo de redenção, o que funciona como disfarce dos outros processos mais apelativos do drama. Mas veja, é possível ir um pouco além dessa intenção própria da história e visualizar um comentário inconsequente sobre as noções de manipulação comunicativa do poder político.

O filme até intencionalmente tange a esses comentários, mas são beliscos calculados ao processo da terapia fonoaudiológica, provocações que desarmam o personagem de seu temperamento forte, mas como dito, dá para ir além, ignorando a fidedignidade histórica, e enxergar tudo como uma grande piada – ácida – sobre o orgulho de uma figura poderosa. Olhando por esse lado, Colin Firth realmente está muito bem, e não é uma visão muita exagerada, visto que o ator deve ter sido selecionado para Kingsman: Serviço Secreto por trabalhar muito bem a fisicalidade cartunesca da deficiência num pressuposto realista de seriedade no olhar. Então, o contraste automático com esse teoricamente sério, com caras, bocas e travamentos da voz totalmente exagerados se torna involuntariamente divertido de se acompanhar, lógico, se não levar a sério como o filme deseja e se não olhar a piada como um artifício de leveza, mas como um real deboche do constrangimento da condição física e psicológica do protagonista.

Como isso vai de encontro a todos os princípios temáticos que o filme levanta, é uma visão, sim, incoerente, mas que liberta a experiência de seus rótulos facilitadores, melhorando consideravelmente ao menos o bloco secundário emotivo, que é essa relação de amizade entre médico e paciente construída através de atritos, que pelas atuações soam realmente convincentes. Há outros pontos isolados nesse sentido secundário de dramaticidade que também não são tão ruins, como o espelhamento entre as cenas iniciais e finais de discurso, que encenam perfeitamente a vulnerabilidade do personagem através de um jogo de câmera igualmente travado, de muitas pausas em troca de planos fechados pegando a angústia particular do momento. Uma pena que o filme não se mantenha em uma unidade coesa para nenhum lado.

Se a intenção de Hooper é prover uma virada à condição do personagem, por que os planos incitam em rebaixá-lo em câmera subjetiva até mesmo nas cenas comuns? O ordinário, que teoricamente busca ser valorizado por equidade, na prática com o uso desses planos sentimentalistas vira uma anomalia, onde a intenção é mal-executada e o duplo sentido da piada é tão inconsequente que não consegue se tornar uma real personalidade do filme, apesar de ser uma boa desculpa para defender o filme. Mas é aquilo, defender até um certo ponto, porque mesmo com algum esforço e um envolvimento total ao exercício empático, não dá para não dizer que seu realizador estava muito mais preocupado em corresponder a convenções de uma premiação do que articular a sua visão sobre uma determinada história que merecia ser melhor contada.

O Discurso do Rei (The King’s Speech | EUA-Reino Unido-Austrália, 2010)
Direção:
Tom Hooper
Roteiro: David Seidler
Elenco: Colin Firth, Geoffrey Rush, Helena Boham Carter, Derek Jacobi, Guy Pearce, Timothy Spall, Robert Portal
Duração: 118 minutos

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