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Crítica | O Escudo Arverno (Asterix)

por Ritter Fan
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O Escudo Arverno, um dos poucos títulos de Asterix que não contém o nome do herói, é uma história quase singular de René Goscinny. O autor apresenta um contexto histórico misturado com ficção que antecede a famosa imagem da rebelde aldeia gaulesa e, a partir dela, monta uma narrativa que aparentemente não vai a lugar nenhum, somente para, da metade em diante, começar uma investigação divertidíssima por parte de Asterix e Obelix, que, finalmente, volta, em movimento circular ao início. É, diria, o único volume das aventuras de Asterix que um crítico precisa tomar cuidado para não passar spoilers aos leitores. Já adianto que não estragarei a “revelação surpresa” para ninguém, mesmo considerando as várias décadas desde o lançamento do álbum.

Esse prelúdio histórico-fictício do começo dá conta de um dos eventos mais importantes das invasões romanas na Gália: a rendição do líder arverno Vercingetórix e a deposição de suas armas aos pés de Júlio César, algo que Goscinny toca bem no início de Asterix, o Gaulês. Usando o famoso fato histórico da dominação de César sobre a Gália e a entrega simbólica das armas (que realmente aconteceu), Goscinny, então, parte para a ficção, criando eventos que se passam logo após, com o escudo de Vercingetórix sendo afanado por um legionário e, ao longo do tempo, passando de mão em mão até desaparecer nas brumas do tempo.

O autor deixa esse mistério no ar e corta, finalmente, para a aldeia gaulesa que todos conhecemos e para as terríveis dores renais de Abracurcix, o chefe, que Panoramix só pode aliviar, não curar, pois a cura só pode vir com o chefe indo para Acquae Calidae (Vichy, na região de Arverne, famosa até hoje por suas águas termais, como o nome em latim deixa evidente) para ser tratado pelo druida e diretor das termais locais, Diagnostix. Claro que Abracurcix odeia a ideia de fazer regime e odeia mais ainda o fato de que seus acompanhantes – Asterix e Obelix – se refestelam com comida aos borbotões enquanto ele tem que viver com legumes e folhas. Não demora muito e Diagnostix determina que os dois não mais podem ficar por lá e, sem voltar para a aldeia, Asterix e Obelix começam a literalmente fazer turismo pelo que eles chamam de Terras dos Arvernos.

A progressão da história é um tanto quanto aleatória, com acontecimentos muito mais dependentes da coincidência do que de qualquer outra coisa, mas Goscinny não perde a oportunidade para cutucar as feridas francesas, a começar pelas intermináveis brincadeiras com o sotaque dos habitantes da região, que usam o som do “ch” no lugar do “j” e outras letras e não se tocam que falam diferente. Essa diferença fonética existe na França até hoje em dia, mas, claro, não é algo tão sensível assim, já que algumas frases – mesmo no original em francês – ficam próximas do ininteligível. Mas é uma diversão, sem dúvida. Outro ponto que Goscinny não deixa de tocar é, claro, a derrota de Vercingetórix, na chamada Batalha de Alésia. A mera menção ao local já leva os arvernos à loucura, que não querem saber de discutir o assunto.

Mas somente quando acontecimentos levam Júlio César a decidir que quer desfilar em Gergóvia (a cidade mais importante da Terra dos Arvernos e, hoje, Gergóvia) com o tal “Escudo Arverno” do título é que a narrativa passa a se desenrolar de maneira realmente interessante, com Asterix e Obelix de um lado e os romanos liderados pelo tribuno Tullius Fanfrelus de outro tentando encontrar a quase mítica arma de Vercingetórix. Com isso, aquela primeira página misteriosa, em que vemos o escudo passando de mão em mão, é descortinada em detalhes em uma trama detetivesca de primeira, que nos faz passear por toda a região.

Podem parecer histórias fragmentadas, mas Goscinny consegue um roteiro circular e lógico, ainda que, para isso, tenha que convenientemente esquecer-se de alguns personagens aqui e ali, que reaparecem em momentos chave ao longo da narrativa. Além disso, depois que Abracurcix é deixado em Acqua Calidae, a trama “turística” com Asterix e Obelix é um pouco longa demais, enfraquecendo o miolo do álbum, mesmo que seja divertido decifrar os balões cheios de sotaque dos arvernos.

A arte de Albert Uderzo continua em alta, sem variações em relação aos volumes anteriores. Não há, mais pela história em si, a latitude variada que o desenhista teve em, por exemplo Asterix Legionário e Asterix e Cleópatra, por ser uma narrativa não só menos ambiciosa, como, também, circunscrita à frança, com franceses, ainda que de região diferente. Mesmo assim, é fantástico, por exemplo, ver como o artista recria a fábrica de pneus Michelin nos tempos antigos (mais sobre isso abaixo, em Curiosidades) e, também, os aspectos pitorescos das cidades da Terra dos Arvernos.

O Escudo Arverno é, definitivamente, uma história diferente de Asterix, com ares mais detetivescos do que aventureiros e que consegue manter a curiosidade até o final, ainda que perca um pouco o ritmo no meio. De toda forma, é mais um álbum que merece ser conferido.

Curiosidades:

– Latim: Diem Perdidi. Dito no jogo, quando o legionário que primeiro pega o escudo de Vercingetórix o perde. Em tradução para o português, pode ser “dia desperdiçado” ou “dia perdido”.

– Latim: Quo vadis? Para aonde vai? em português. Indagação do Centurião para o legionário que ganha o escudo no jogo.

– Latim: O Tempora O Mores! Frase dita pelo legionário que tem o escudo confiscado pelo Centurião. Escrita pelo poeta Cícero na obra Primeira Oração contra Catiline, significa “que tempos, que costumes” em tradução livre.

– Latim: Vade Retro! Audaces Fortuna Juvat! Frases ditas por Tullius  Franfrelus para Obelix, quando se encontram pela primeira vez. A primeira é conhecida e significa “afaste-se”, vinda mais famosamente de São Bento de Núrsia como uma frase de exorcismo. A segunda frase pode ser traduzida como “a fortuna ajuda os audazes” ou, talvez mais especificamente “o sucesso depende de risco”.

– Latim: Veni, vidi, vici. Famosa frase reputada como sendo de Júlio César em mensagem proferida ao Senado Romano depois da vitória sobre Fárnaces II do Ponto na Batalha de Zela. Significa, em português, “Vim, vi e venci.”

– Latim: Ab imo pectore. – Tullius Fanfrellus diz isso para Júlio César quando o plano de desfilar em cima do escudo é revelado. Pode ser traduzida como “do fundo do peito” ou “com franqueza”.

– Latim: Carpe Diem. – Aparece em uma placa na mesa de Coquelus, na fábrica de rodas. Muito mais conhecida como sendo uma das frases ditas no filme Sociedade dos Poetas Mortos do que por ter figurado em poema de Horácio, a frase significa “aproveite o dia” ou “aproveite o momento”.

– Latim: Bis repetita. Dita por Júlio César para evitar um “novo ataque à Gergóvia” por Tullius Fanfrellus. A frase completa é bis repetita non placent e veio de um verso de Horácio, em que ele afirma que determinada obra só agrada uma vez e outras, repetidas mais vezes, podem agradar mais ainda.

 – Os habitantes da região de Arverne na França tem sotaque específico e Goscinny brinca o tempo todo com isso, alterando consoentes para “ch”. E essa brincadeira ficou bem refletida em português, diante da raiz latina das duas línguas.

– Só eu que detectei um quê de racismo no sistema de intercomunicação da fábrica de rodas de Coquelus? Afinal, trata-se de um sistema pelo qual um botão na mesa é apertado e uma porta na própria mesa se abre para que um nativo da África saia correndo para passar a mensagem para quem a tiver que receber. É engraçado, mas, no mínimo, hoje em dia, politicamente incorreto.

– Asterix menciona o “dólmen das lamentações”, uma clara referência ao Muro das Lamentações. Um dólmen é um monumento megalítico que normalmente indica a existência de uma tumba ou de adoração, algo razoavelmente comum em diversos países do mundo.

– Essa é uma das poucas histórias em que Chatotorix participa do banquete e a única em que Abracurcix não participa.

– Pela primeira vez o nome da esposa de Abracurcix – Naftalina (Bonnemine, no original em francês) – é mencionado.

– Asterix e Obelix vão visitar Coquelus em sua fábrica de rodas em Nemessos. Nemessos é, hoje, a cidade de Clermont-Ferrand, sede da fábrica de pneus Michelin.

Locais:

Aldeia Gaulesa.

Acquae Calidae – Vichy (na chamada Terra dos Arvernos e famosa por suas águas termais).

Terra dos Arvernos – Região do maciço central da França dominada pela tribo dos Arvernos cujo personagem mais importante foi Vercingetórix, líder gaulês que acabou derrotado por Júlio César na Batalha de Alésia.

Gergóvia – Gergovie no original francês. Palco da Batalha da Gergóvia, em que Vercingetórix sai vitorioso.

Alésia – À época em que o álbum foi lançado, havia dúvidas históricas sobre a exata localização de Alésia, algo que hoje não mais existe: fica nas proximidades do que hoje é Dijon, na França. Foi palco da famosa Batalha de Alésia, que levou à derrota de Vercingetórix e a deposição de suas armas aos pés de Júlio César, que solidifica, com isso, sua dominação sobre a Gália.

Nemessos – Hoje, Clermont-Ferrand cidade sede da fábrica de pneus Michelin.

Nerioma (mencionada). Hoje, Neris.

Borvo (mencionada) – La Bourboule.

Calentes Baiae (mencionada) – Chaudes-Aigues

Anichium (mencionada) – Puy.

Banco da Helvécia – Menção por Coquelus. Helvécia é o nome antigo da Suíça, famosa por seus bancos, claro, mas que até hoje é usado como nome oficial do país: Confederação Helvética.

Segodunum (mencionada) – Rodez.

Numídia (mencionada) – Para aonde JC diz que vai mandar Tullius Franfrellus e a guarnição romana que ele comanda. Hoje, a Numídia compreende a Argélia e parte da Tunísia ocidental.

Personagens (além de Asterix e Obelix):

– Abracurcix – Chefe da Aldeia Gaulesa.

– Naftalina – Esposa de Abracurcix.

– Panoramix – Druida gaulês.

– Diagnostix – druida diretor das termas de Acquae Calidae.

– Tullius Fanfrelus – Tribuno romano.

– Alambix – Gaulês das Terras dos Arvernos (mercador de vinhos e carvão).

– Caius Sinaldemenus – Legionário romano preguiçoso que é transformado em espião.

– Lucius Coquelus – Legionário que roubou o escudo.

– Cornélia – Secretária-chefe de Coquelus.

– Percalina – Recepcionista na fábrica de rodas.

– Marcus Perrus – Legionário que ganhou o escudo de Coquelus no jogo.

– Centurião Pipadetintus – Centurião que confiscou o escudo de Marcus Perrus.

– Torneirix – Cunhado de Alambix.

– Prognostix – Druida diretor das termas de Borvo.

– Vercingetórix – Líder histórico gaulês.

  • Crítica originalmente publicada em 07 de janeiro de 2015. Revisada e atualizada para republicação hoje, 03/06/2020, como parte da versão definitiva do Especial Asterix do Plano Crítico.

O Escudo Arverno (Le Bouclier Arverne, França/Bélgica – 1968)
Roteiro: René Goscinny
Arte: Albert Uderzo
Editora original: Pilote (serializada em 1967 e lançada em formato encadernado em 1968)
Editoras no Brasil: Record (em formato encadernado)
Páginas: 50

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