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Crítica | O Fantasma da Liberdade

por Ritter Fan
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Já com 74 anos quando começou os trabalhos em O Fantasma da Liberdade, o cineasta aragonês Luís Buñuel provavelmente sabia que não teria muito mais tempo pela frente. Ele já queria ter se aposentado antes de O Discreto Charme da Burguesia, mas novas ideias o impeliram a continuar e essas ideias o levaram, talvez, aos momentos mais altos e inesquecíveis de sua longa e frutífera carreira.

O Fantasma da Liberdade, de certa forma, parece uma antologia de toda uma maravilhosa filmografia, uma – talvez última – ode ao surrealismo que deu o pontapé inicial na carreira do diretor, com os sensacionais Um Cão Andaluz e A Idade do Ouro, e que se manteve presente senão em todos, mas na grande maioria dos filmes desse espanhol que já havia marcado o mundo com seu trabalho.

Mas, se o espectador achar que O Fantasma da Liberdade é uma obra melancólica, entristecida, finalista do diretor, ele estará enganado. A fita é uma visão viva, contundente, por vezes hilária, outras vezes extremamente crítica de tudo aquilo que Buñuel sempre teve prazer em desancar: a classe média alta, os costumes, a religião e o papel das autoridades em geral. Essa é uma daquelas experiências cinematográficas que ficará na mente de quem quer que a assista, gostando ou não do resultado.

Se Um Cão Andaluz e, até certo ponto, A Idade do Ouro, foram pródigos em imagens de sonho, retiradas das mentes férteis de Buñuel e Salvador Dalí, O Fantasma da Liberdade é um longa-metragem refrescantemente sem freios, vindo à reboque do absoluto sucesso – e do Oscar – obtido com seu trabalho anterior. Mesmo com 74 anos (e estamos falando da década de 70 época em que 74 anos não era uma idade fácil de se alcançar), a imaginação de Buñuel, ajudado por seu já antigo colaborador Jean-Claude Carrière, é absolutamente impressionante.

Novamente, claro, tentar racionalizar as imagens que vemos em seus mínimos detalhes é bobagem, coisa que o próprio diretor condena em seu livro de memórias, Meu Último Suspiro, que seria escrito oito anos depois de O Fantasma da Liberdade e um ano antes de seu falecimento. Há avestruzes e carteiros entrando no quarto de dormir do primeiro casal da obra, crianças desaparecidas que estão na frente dos pais e do delegado de polícia, assassinos que são condenados e saem livres, leves e soltos da prisão, pedófilos que entregam fotografias “picantes” de viagens para crianças, monges carmelitas na jogatina depois de rezar o terço, casal sadomasoquista que não tem nenhum traço de vergonha em começar uma sessão de chicotadas na frente dos convidados e, claro, o já antológico jantar em que as cadeiras são vasos sanitários. E isso só arranha a superfície desse genial trabalho que não deixará o espectador incólume.

Mas as críticas estão lá. E pelo menos podemos divisar, dentro das fascinantes sequências filmadas por Buñuel, uma lógica estranha e absolutamente envolvente. Para começar, a narrativa que todos nós de certa forma esperamos não existe. Os acontecimentos no filme são encadeados por encontros fortuitos, com personagens que aparecem em uma sequência saindo para fazer parte de outra completamente sem relação com a primeira e assim em diante. O fio narrativo é inexistente pelo menos em termos normais ou esperados.

Assim, começando na invasão napoleônica em Toledo, Buñuel já corta para os dias atuais com babás conversando e deixando que duas lindas crianças sejam abordadas por um “pedófilo” que as presenteia com fotografias misteriosas, mas supostamente de conteúdo sexual. Elas as entregam a seus pais, que olham excitados cada uma delas, considerando inaceitável o que vêem e rasgando a que parece ser a foto mais pesada: uma imagem tipo cartão postal da Igreja de Sacre Coeur, em Paris. É nesse momento que o espectador descobre que está embarcando em uma viagem lisérgica de sonho.

Mas, diferente de A Bela da Tarde e de O Discreto Charme da Burguesia, as sequências de sonho, em O Fantasma da Liberdade, são mescladas completamente com as sequências “reais” (as aspas procedem, pois não é impossível simplesmente dizer que tudo é surreal nessa película). Não sabemos quando uma acaba e outra começa e isso nem mesmo é importante. O que realmente importa é acompanharmos o fluxo de imagens arrebatadoras que nos são apresentadas uma atrás da outra.

No entanto, é evidente que é perfeitamente possível localizar as críticas deixadas lá por Buñuel. A religião – especialmente a Igreja Católica em razão de sua formação – ganha sua costumeira alfinetada na excelente sequência na estalagem no meio da estrada em que monges carmelitas, depois de rezar o terço pelo pai de uma personagem, vão para a mesa de jogatina, com direito a muita fumaça de cigarros e medalhinhas de santos no lugar de fichas. Memorável!

O mesmo vale para as autoridades, especialmente a policial, que é retratada da maneira mais incompetente possível, com uma esquizofrênica aula na academia, para policiais já formados, que aprendem, como o be-a-bá, o que é lei e como ela varia de cultura para cultura. E, é claro, a classe média alta leva seu safanão também, com a completa inversão física dos locais de um apartamento. O banheiro é a sala de jantar, onde todos estão juntos falando porcaria (para não usar uma certa palavra que começa com “m”) e a sala de jantar é o local onde você, sozinho e escondido, faz o que tem que fazer. Genial!

O Fantasma da Liberdade é um deleite audiovisual, uma obra de um senhor de 74 anos que, como um jovem sorridente, olha para trás para sua carreira irretocável como se ainda estivesse olhando para a frente, para seu futuro. Buñuel faz de sua penúltima obra um incrível presente cinematográfico, um que precisa ser visto e revisto e, depois, visto novamente.

  • Crítica originalmente publicada em 27 de janeiro de 2014. Revisada para republicação em 20/09/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do diretor e da elaboração da versão definitiva de seu Especial aqui no Plano Crítico.

O Fantasma da Liberdade (Le Fantôme de la Liberté, Itália/França – 1974)
Direção: Luis Buñuel
Roteiro: Luis Buñuel, Jean-Claude Carrière
Elenco: Adriana Asti, Julien Bertheau, Jean-Claude Brialy, Adolfo Celi, Paul Frankeur, Michael Lonsdale, Pierre Maguelon, François Maistre, Hélène Perdrière, Michel Piccoli, Claude Piéplu, Jean Rochefort, Bernard Verley, Milena Vukotic
Duração: 104 min.

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