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Crítica | O Filho de Saul

por Luiz Santiago
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É impossível escrever de maneira aberta sobre esse filme sem apontar algumas coisas de seu enredo que podem ser consideras spoilers, mesmo que fiquem óbvias a partir da sinopse e do trailer  do filme. Em todo caso, fica aqui o aviso.

O Filho de Saul é o primeiro longa-metragem de László Nemes, que já tendo dirigido três curtas, escrito alguns pequenos roteiros, atuado e trabalhado como assistente de direção para Béla Tarr em O Homem de Londres (2007), assume agora a direção em um projeto de peso, um filme que vai entrar para a História como um dos mais cruéis relatos de um campo de concentração nazista durante a Segunda Guerra Mundial.

Escrito por Nemes e Clara Royer, O Filho de Saul tem um foco extremamente simples, centrado no que o título diz. Todavia, esse filho e o seu possível pai estão em meio ao holocausto, no ano de 1944, em um lugar onde outros judeus também integram os Sonderkommandos (grupo de judeus escolhidos que trabalhavam como assistentes de administração e manutenção dos campos até que fossem selecionados e também mortos) e onde a morte parece não incomodar mais ninguém.

Pode parecer estranho para alguns espectadores a frieza com que os personagens lidam com o extermínio, mas a exposição constante desses homens às atrocidades acabam por banalizar e diminuir o peso da violência e da morte para eles. O que temos são praticamente zumbis que limpam, esfregam, assentem para os nazistas e seguem as ordens de guiar centenas de pessoas para as câmaras de gás ou, em uma fase posterior, de jogar com pás quilos e quilos de cinzas de corpos cremados por todo o campo. Em dado momento de conflito de interesses, um dos personagens chega a dizer a um antagonista: “já estamos todos mortos“.

É neste cenário de desumanização, banalização do mal, carnificina e dominação que o plot de O Filho de Saul ganha corpo: em uma das limpezas das câmaras, Saul ouve a respiração de um garoto sobrevivente, mesmo após inalar o gás Zyklon B. Recolhido, o adolescente é sufocado por um nazista e morre, mas Saul se compadece do menino e pede para que o médico, também judeu, não faça a autópsia solicitada. Saul vê ali o seu filho (e isso é um ponto que fica em aberto para que o espectador decida se o menino era ou não filho de Saul) e quer enterrá-lo com honras, passando por todos os rituais de preparação do corpo e da alma, tendo a presença de um rabino para oficializar o enterro.

Nesta pedra angular o texto cresce em conteúdo e vemos aumentar a obstinação de Saul com a ideia de um enterro digno para o filho, às vezes colocando ele e seus companheiros em desnecessário risco apenas para achar um rabino que faça as honras. Este e o final com uma ponta solta (a criança) são os únicos pontos fracos no enredo do longa, que se ergue magistralmente para capturar a barbárie dos campos de concentração, mas nada como estamos acostumados a ver em filmes do gênero. A representação dos gritos através de uma edição e mixagem de som soberbas, os sons do ambiente e os diálogos mínimos são os passos iniciais para uma mostragem inovadora dos campos. E vejam que isso acontece com o mínimo de exibição de corpos ou de sangue em profusão, porque o destaque no filme está apenas no primeiro plano (normalmente o ator Géza Röhrig, que interpreta Saul, durante muito tempo filmado pelas costas); todo o entorno está fora de foco, com raras cenas fora desse padrão.

Em O Filho de Saul não existe trilha sonora. O foi inteiramente rodado com lentes de 40mm. A câmera está quase a totalidade do tempo na mão, e cambaleia frenética por corredores escuros, sujos. Os planos-sequência são frequentes e o roteiro faz questão de jamais nos dar paz. Seja pelo formato de captura das imagens, pela adoção de um ponto de vista em “primeira pessoa” ou pelo trabalho da equipe de som para nos fazer ouvir o desespero, fato é que poucas vezes um filme de guera foi capaz de arrancar o espectador de onde ele está e o carregar para dentro da tela. Nem o assumidamente filme-base para O Filho de Saul, o soviético Vá e Veja (1985), fez isso com tanta intensidade.

O uso de câmera frenética como o que temos aqui tem desafetos imediatos e sob diversas justificativas, algumas estúpidas e outras muito válidas. Eu também não gosto muito do estilo, mas sempre me permito dialogar com o uso dele quado isso faz sentido. E é isso que o público precisa entender em O Filho de Saul. O diretor praticamente nos entrega um filme que se equipara aos jogos do gênero hack and slash, colocando-nos no lugar do protagonista e tentado-nos fazer entender a ideia fixa de homem para enterrar seu filho — afinal, o garoto, mesmo morto, era a única faísca de sanidade e sentimento que ele tinha (ou adquiriu) — ao passo que não nos deixa dúvidas sobre o que tornou Saul e seus companheiros verdadeiros zumbis agarrando-se ao último filão de existência que possuíam. É como se lutassem por uma vida que não valia a pena viver, mas faziam-nos por uma esperança que, embora não percebessem, estava lá.

Com alguma incursão sobre a resistência dos judeus frente aos nazistas (tema pouco abordado em filmes) e um final condizente com o desenvolvimento do texto, O Filho de Saul nos provoca, nos incomoda e nos convida a ver um fato conhecido sob outras lentes. E o diretor tem sucesso em sua empreitada, pois terminado o filme, nós temos uma outra opinião sobre a localização do inferno e julgamos saber um pouco a sensação do que era “viver” em um lugar como este. O Filho de Saul é uma imersão cruel e poderosa em um campo de concentração. Um pequeno pedaço do horror e das atrocidades que alguns humanos são capazes de fazer a outros humanos.

O Filho de Saul (Saul fia) — Hungria, 2015
Direção: László Nemes
Roteiro: László Nemes, Clara Royer
Elenco: Géza Röhrig, Levente Molnár, Urs Rechn, Todd Charmont, Jerzy Walczak, Sándor Zsótér, Marcin Czarnik, Amitai Kedar, Attila Fritz, Kamil Dobrowolski, Uwe Lauer, Christian Harting
Duração: 107 min.

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