Home FilmesCríticas Crítica | O Futuro da História (2016)

Crítica | O Futuro da História (2016)

por Luiz Santiago
60 views

estrelas 4

Fiona Tan é uma artista visual, com carreira bem estabelecida na fotografia, vídeo e em instalações. Suas obras retratam a inserção do homem em diversas situações de conflitos internos e externos a ele, e transmitem uma sensação de desconforto pelo deslocamento, como se agredisse o público por negá-lo a uma compreensão maior do todo, mexendo com os caminhos da percepção para  confundi-lo no território ingrato da dúvida, a inquietação de que se algo é real, imaginação, delírio ou sonho.

MP (“Missing Person”, maravilhosamente interpretado por Mark O’Halloran) é também um espectador, tão perdido quanto o público que o assiste, e tenta dar sentido às viagens do filme. Devido um ato criminoso do qual foi vítima, o agora chamado MP acorda em um hospital, com perda de memória quase completa. Ele não tem noção de tempo, não sabe seu nome. Consegue lembrar isoladamente de algumas palavras após um tratamento ainda no hospital, mas vai para a casa, com a esposa (uma mulher estranha, para ele), sem saber nada sobre o seu passado.

Perdido em si mesmo, o protagonista de O Futuro da História irá conhecer e ressignificar o maior número de coisas do seu dia a dia nesse processo de se encontrar com o mundo. Ele vê fotos, ouve conversas, visita lugares, erra casas (há uma cômica e ao mesmo tempo desconfortável cena que expõe bem esse erro), passa a colecionar memórias imediatas de coisas que supostamente deveria saber. Alguém que, já em idade madura, começa a viver a vida [novamente] sob um outro olhar, com extrema apreensão, choque e vontade de experimentar.

Fiona Tan utiliza de seu grande conhecimento em instalações para usar o cenário e mover a câmera da maneira mais enigmática e perfeita possível. Sua direção é um grande exercício artístico, mudando o ponto de vista apenas para gerar um outro sentimento de busca ou identificação, nunca para mostrar um segundo ponto de vista para a mesma coisa. Centrando-se nas “primeiras impressões”, a cineasta e co-roteirista faz de seu personagem principal uma representação do eu lírico de Alberto Caeiro, quando disse Sinto-me nascido a cada momento / Para a eterna novidade do Mundo. MP é este indivíduo sedendo por informações, por experiências, por pertencer a todo lugar e a nenhum ao mesmo tempo, ações que fazem dele alguém múltiplo de personalidades, canalha e compassivo; bom e mau; desprezível e admirável; uma pessoa com identidade reconhecida e uma pessoa desaparecida para ela mesma.

O desligamento de Ser, aqui, é a porta de entrada para a visão artística ganhar asas. Há um grande número de viagens reais e imaginárias, cenas oníricas, sequências de grande poder dramatúrgico (Denis Lavant dá um show de interpretação como um vendedor de loteria cego) e pedaços dos dias, meses, anos de MP após o acidente, em seu processo para se tornar alguém.

SPOILERS!

A percepção temporal do espectador, porém, não tem um ambiente tão simples pra descansar. É difícil encontrar uma explicação completamente racional para o roteiro do filme, porque ele já começa de um modo a nos indicar pelo menos duas interpretações óbvias para o que ocorre na fita, como base temporal permanente. A primeira coisa que aparece na tela é o letreiro THE END, e então vemos os créditos e as cenas finais do suposto filme que acabara de terminar (para nós, começar), com os espectadores saindo do cinema andando para trás.

A primeira interpretação pode vir imediatamente como um diálogo metalinguístico, usando o cinema para mostrar coisas distintas que, nesse vídeo-instalação humanista, se relacionam da maneira menos provável possível. Vemos momentos da Primavera Árabe, das manifestações na Ucrânia, na época da anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, além de inúmeras cenas de violência e destruição em grandes cidades, a maioria, dos Estados Unidos.

A perda da memória a nova vida de MP o faz viajar (ou imaginar que viajou? As duas hipóteses são possíveis) e tentar reconectar-se com o mundo; lendo, conhecendo ou pensando conhecer pessoas e lugares. Nesse ínterim, ele se encontra com mulheres, ganha uma postura que varia entre a ironia e o cinismo e assume o fato de não lembrar das coisas como parte de sua personalidade, que se molda ao gosto do mundo, de seu entorno, da sua prisão interna e externa, das suas quebras de corrente para enxergar o que existe além do cubículo onde se instalou.

Seguindo para os territórios mais questionadores, o filme termina mais ou menso como começou, só que com um dilema/dúvida temporal e narrativa que certamente afastará muitos espectadores e que  impacta negativamente na abstração da história. Mas a experiência de um ensaio sobre a memória; de uma crônica em audiovisual sobre a modelagem de uma personalidade; e a excelência técnica, especialmente da direção, valem muito mais do que uma compreensão completa quando a proposta do filme já abre espaço para a dúvida e a inevitável pergunta “quem sou eu?” depois de fazer um grande estrago no cérebro e na visão de mundo do espectador.

O Futuro da História (History’s Future) – Países Baixos, Alemanha, Irlanda
Direção:
Fiona Tan
Roteiro: Fiona Tan, Jonathan Romney
Elenco: Mark O’Halloran, Denis Lavant, Anne Consigny, Hristos Passalis, Manjinder Virk, Rifka Lodeizen
Duração: 95 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais