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Crítica | O Garoto Selvagem

por Guilherme Coral
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estrelas 4

Baseado no livro do Doutor Jean Itard, O Garoto Selvagem é um fascinante estudo social psicológico sobre o homem e a natureza, resgatando a ideia de Rousseau sobre o “bom selvagem”. Truffaut, com poucos recursos investe no projeto de forma bastante pessoal e logo na abertura procura deixar claro que se trata de um caso verídico, algo que transpassa ao tom de documentário da obra. Certamente não se trata de um filme “fácil”, mas que merece ser assistido e reassistido.

A opressão civilizatória do longa-metragem se apresenta de forma arrebatadora de imediato. Um garoto sujo de cabelos e unhas grandes é encontrado em uma floresta na França. Curiosos com o fato os homens “civilizados” ao redor organizam uma equipe de busca, ou de caça, para capturar a selvagem criatura. Desde já somos pegos de surpresa com o garoto em questão sendo tratado como um verdadeiro animal exótico, sendo perseguido por cães e tirado de seus esconderijos com fogo e fumaça. Ao ser praticamente raptado, o jovem que não passa dos doze anos passa por uma série de mãos de estudiosos, que buscam entender aquela persona tão incomum. Chega a ser perturbador a forma como os parisienses se aglomeram para, fascinados, observarem o pobre garoto.

Curiosamente, porém, de todas essas indignidades a maior pela qual Victor (Jean-Pierre Cargol) passa é justamente a tentativa de educação por parte do Dr. Jean Itard (interpretado pelo próprio Truffaut). O roteiro aqui é preciso, deixando claro que tais médicos procuram ajudar a criança, quando, de fato, ela não precisava de ajuda – estava perfeitamente bem em seu estado selvagem (a tal ponto não há como não ver o argumento de Rousseau se construindo). Do andar sobre as duas pernas até aprender a falar, o menino vai se tornando cada vez mais como nós, mas sempre retomando suas origens com fugas e olhares distantes para as árvores. Com o tempo a personalidade exótica vai desaparecendo, se transformando a algo próximo de uma criança comum.

A presença do diretor em cena, apesar de apenas cumprir o papel de seu personagem, sem impressionar, é crucial para a direção da criança. Em diversos momentos um olhar atento perceberá que François direciona a movimentação de Jean-Pierre, sempre prezando o realismo da obra. De fato, temos aqui a maior qualidade de O Garoto Selvagem – como dito, a linguagem documental tem forte presença, em especial através dos movimentos de câmera precisos que acompanham cada personagem. Além disso, porém, Truffaut opta por uma ênfase no caráter de época do longa e, além do óbvio preto e branco, utiliza transições típicas aos primórdios do cinema.

A caracterização não se limita à linguagem da narrativa e marca forte presença desenho de produção, surpreendente considerando as limitações financeiras da obra. Somos perfeitamente transportados para 1798, ao ponto que verdadeiramente acreditamos estarmos assistindo gravações de tal época (ainda que seja algo impossível por razões óbvias).

Diante de tal busca pelo naturalismo, contudo, o roteiro acaba pecando por uma relativa repetitividade. Como já dito, o filme funciona como um fascinante estudo social e psicológico, mas como narrativa cinematográfica ele pode nos cansar pelas sequências atrás de sequências dos estudos de Victor. Felizmente, o diretor está ciente de tal fato e trabalha em uma duração bastante limitada de 83 minutos que termina exatamente quando o cansaço atinge o espectador de fato.

Esse fator, porém, não influi na qualidade de O Garoto Selvagem, que parece somente aumentar sua força sobre nós com o passar dos anos – quanto mais nos afastamos da época retratada, maior nosso estranhamento em relação a ela. Novamente reitero que não se trata de um filme fácil de ser assistido, mas que merece ser apreciado por qualquer espectador –  preferencialmente mais de uma vez. Jean-Jacques Rousseau em essência.

O Garoto Selvagem (L’enfant Sauvage – França, 1970)
Direção:
François Truffaut
Roteiro: François Truffaut, Jean Gruault (baseado no livro de Jean Itard)
Elenco: Jean-Pierre Cargol, François Truffaut, Françoise Seigner, Jean Dasté, Annie Miller, Claude Miller, Paul Villé
Duração: 83 min.

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