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Crítica | O Grande Circo Místico

por Gabriel Carvalho
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“A senhora não queria me dar um presente? Eu quero um circo.”

Um circo como presente configura-se como uma péssima escolha, porque em O Grande Circo Místico, o maior espetáculo de todos parece ser a maldição que incorpora cada uma das gerações de artistas circenses representados no filme, que narra cem anos de mulheres sendo violentadas, mulheres sendo mortas, relacionamentos incestuosos, antagonistas injustificáveis e proposições narrativas postas no fogo, diante de um malabarismo com muita pouca mística. Uma decisão equivocada, portanto, a tomada pelo primeiro protagonista do longa-metragem, Fred (Rafael Lozano), descendente de uma imperatriz que, teoricamente, seria virgem e, em decorrência disso, mentiu ao seu povo, originando uma continuidade de profanações – ao menos, o que Carlos Diegues parece entender como profanação. A escolha de O Grande Circo Místico, novo longa-metragem do popular cineasta, como representante brasileiro para a nonagésima-primeira edição do Oscar, paralelamente a esse equívoco, também é curiosa, certamente questionável. O estimado público recebe uma torta na cara – os risos e, por fim, as cortinas sendo fechadas.

As coisas mais fantásticas acerca do longa-metragem do prestigiado Cacá Diegues residem, porém, nas contribuições periféricas à essência dessa produção cinematográfica, como a belíssima trilha-sonora, por exemplo, composta por Chico Buarque e Edu Lobo. As cenas se engrandecem diante desse acompanhamento musical magnífico. Os números artísticos, como as performances de Beatriz (Bruna Linzmeyer), no início, e de Clara (Flora Diegues), mais para frente, são vislumbres poéticos do cineasta, a caminho de compreender o mundo que está sendo criado, nesse contraste que fomenta entre o sagrado e o profano. O artista de circo, dentro do circo, é artista. O artista de circo, fora do circo, é ser humano. Os melhores momentos do filme são justamente esses segmentos, que, em alguns casos, até mesmo servem como transições entre uma geração e outra, o que imerge o espectador, recriando atmosfera nessas passagens temporais, presumindo uma certa renovação que, no entanto, não tem nada de ineditismo, contudo, de redundância. O mesmo ciclo da tragédia pela tragédia é reiterado.

O desenho de produção é o misticismo como finalidade, enquanto, em casos de projetos realmente bem sucedidos, contribuiria para construir uma narrativa coesa, coerente com uma proposta a ratificar a necessidade desses intervalos temporais, se encaminhando ao fantástico alcançado. Os personagens envelhecem para morrer. Como roteiro, O Grande Circo Místico acredita que a jornada de um ser humano é moldada pelo seu nascimento, pelo sexo que pratica e pela sua morte. O circo como circo, como criação criativa, é completamente deixado de lado e o humano se sobressai, mas não o humano multifacetado, entretanto, uma concepção mórbida do que constrói uma personalidade mortal, com defeitos se acumulando acima de defeitos. O personagem com retardo mental vira estuprador. Os irmãos que não possuem mais ninguém, senão um ao outro, iniciam uma relação incestuosa – o ridículo se comporta na frase “queremos nos casar”, proferida por crianças, indução comportamental completamente imbecil. Um comentário simplesmente inocente é transformado em uma possessão disforme.

As décadas se passam. O espectador está inerte diante de uma trama extremamente confusa em termos discursivos, quase sádica em alguns sentidos, muitos sentidos na realidade – a continuar uma listagem de problemáticas, também temos a mulher religiosa que é estuprada, revelando um corpo coberto por tatuagens cristãs, além da princesinha que morre justamente ao atingir o orgasmo. As ironias são desgostosas – a punição divina ao prazer. Os personagens perdem força à medida que são substituídos por outros menos interessantes. Vincent Cassel interpreta um homem profundamente antipático, enquanto, em determinados momentos, poderia dar margem a uma composição maior sobre o coração do homem. O resumo sobre o seu personagem é, enfim, o seu mero falo. O cinema do cineasta parece verdadeiramente ultrapassado, ainda colocando o sexo em uma esfera quase patética quando observada sob uma ótica contemporânea. Uma obra que carrega, consigo, em uma última instância, um personagem interessantíssimo, charmoso e enigmático, entretanto, que justamente elimina qualquer intenção menos perversamente cruel do filme.

O misterioso Celaví (Jesuíta Barbosa) é a alma do circo, sem envelhecer com o passar das décadas – a expressão francesa “c’est la vie”, evidente no nome do personagem, significa “é a vida”A intenção de O Grande Circo Místico, consumada por essa frase, é mostrar ao espectador que as terríveis coisas que aconteceram com os personagens aconteceram porque eram supostas de acontecerem. Um grandioso último ato encerraria as desgraças, aparentemente justificando o passado, contudo, não de uma pessoa, mas de gerações de famílias. Uma subversão conceitual que ninguém entende. Quando encerra o seu longa-metragem rompendo com essa nudez que deve ser castigada, com o sexo como forma de punição, Carlos Diegues parece estar sendo muito mais auto-indulgente do que auto-consciente dos seus pecados como artista. Na conclusão derradeira de uma jornada de profanações, as gêmeas residem, as mais destruídas das personagens, emitindo sorrisos adoecidos, consequentes a alguma deficiência mental mais que clara. O místico é alcançado, parecendo ser mais uma gargalhada insana do cineasta sobre o seu público do que um verdadeiro “o show deve continuar”.

O Grande Circo Místico – Brasil, 2018
Direção: Carlos Diegues
Roteiro: Jorge de Lima, George Moura, Carlos Diegues
Elenco: Vincent Cassel, Dawid Ogrodnik, Jesuíta Barbosa, Catherine Mouchet, Juliano Cazarré, Antônio Fagundes, Mariana Ximenes, Luíza Mariani, Bruna Linzmeyer, Rafael Lozano, Tiago Delfino, Amanda Britto, Nuno Lopes, Albano Jerónimo, Miguel Monteiro
Duração: 105 min.

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