Home LiteraturaConto Crítica | O Homem da Areia, de E.T.A. Hoffmann

Crítica | O Homem da Areia, de E.T.A. Hoffmann

por Luiz Santiago
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O Homem da Areia, de Ernst Theodor Amadeus Hoffmann é uma obra inestimável. Lançada em 1817 (mas provavelmente escrita dois anos antes), como parte do livro As Peças da Noite, a narrativa é uma versão macabra do personagem que recebe nomes diferentes em diferentes culturas, tais como The Sandman, Der Sandmann, João Pestana, Ole Lukøje, Pedro Chosco, etc., todos estes variações mais ou menos infantis de narrativas orais a respeito dos Deuses gregos Hipnos (sono) e Morfeu (sonho), que tentavam explicar a saída de uma pessoa de seu estado de vigília para o mergulho em um mundo de imagens mentais muitas vezes amedrontadoras.

Na versão de Hoffmann, o imaginário infantil é preservado na instigante narrativa subjetiva de Nathanael, que conta para o amigo Lothar, através de cartas, “as coisas terríveis” que vem se passando com ele. O autor divide essa narrativa em três grandes blocos, sendo o primeiro, uma carta de Nathanael para Lothar; o segundo, uma carta de Clara (irmã de Lothar) para seu noivo Nathanael; e novamente uma resposta amarga de Nathanael para Lothar, ao final da qual temos uma interrupção das narrativas pessoais e o texto ganha uma outra cor, rumo e qualidade, com um “amigo em comum” assumido a narrativa, fazendo-nos entender que as cartas lidas no início eram apenas citações para facilitar o “grande evento” que estava por vir. E é a partir desse ponto que o texto começa a cair consideravelmente de qualidade, atirando para todos os lados e desviando-se de seu propósito central, criando um segundo e terceiro conflitos, que se amarram mal à ideia do Homem da Areia.

O jogo de perspectivas aqui tem enorme valor, porque ressalta a ideia de pós-trauma de Nathanael, após ver o homem pela primeira vez. Na verdade, o indivíduo era Coppelius, advogado da família que vinha à noite, por volta das 21h, fazer experimentos químicos com o pai de Nathanael. O entendimento do que uma criança pode fantasiar — especialmente quando uma governanta conta a história de um homem que joga areia nos olhos das crianças más, que não querem dormir, e os olhos, saltados das órbitas, são recolhidos pelo Homem da Areia que os leva para seu ninho na Lua, a fim de alimentar os filhotes — está em pauta o tempo todo, e vai ganhando formas mais sombrias, à medida que o protagonista, mesmo na vida adulta, mantém o medo diante de um certo aspecto físico, representado, nesta segunda fase, por um velho chamado Coppola, inicialmente, um intrometido vendedor de barômetros.

Os simbolismos são muitos, assim como o legado do conto. E que aparece no texto como um conceito de estética, ganhará, anos depois, uma versão psicanalítica na teoria do Estranho-Familiar ou O Inquietante, na obra de Freud, que em 1919 escreveu Das Unheimliche (O Estranho), reinterpretando principalmente o conceito dos olhos como um aspecto de medo da castração. Os muitos pavores de um garoto e a forma como Hoffmann expõe determinados encontros tornam a discussão ainda mais interessante. Há espaço, inclusive, para trazer à tona a famosa interpretação de que Coppelius/Coppola não existem de fato, são alucinações ou metáforas, representando um estado de perturbação já fixo de Nathanael ou uma de suas variações sombrias. Isso é bem sensível no texto, porque o autor brinca com a nossa percepção de sentidos, às vezes dizendo o que o protagonista ouve e vê, isolando essas definições para quando os homens misteriosos estão em cena.

Toda essa relação simbólico-metafórica, no entanto, é mergulhada em um estranho drama de percepção de realidade que poderia muitíssimo bem ser um outro conto. A partir do momento em que o “amigo do amigo” assume a narração e as cartas são deixadas de lado, o texto se torna mais cansativo e o narrador divaga impiedosamente por assuntos inúteis, um verdadeiro desvio da obra, até aquele momento, bastante sólida e interessante. Se não tivesse aliado a uma outra trama, talvez o leitor pudesse apreciar mais o cenário criado para o autômato Olívia (outro símbolo, misturando tecnologia com uma figura igualmente folclórica e macabra, a da “noiva morta“) e o que ela causa no pobre Nathanael, especialmente no fim. A dissociação, no entanto, mesmo atrapalhando por completo a parte final do enredo, não tira a importância da primeira parte, que é inteligente, muito bem escrita e que causa medo, trazendo uma versão inesquecível para uma personalidade do folclore europeu que, se a gente acreditar, aparece para jogar areia nos nossos olhos todos os dias. Pelo menos esta não é a versão que quer levar os nossos olhos para um ninho na Lua. Ainda bem.

O Homem da Areia (Der Sandmann) — Alemanha, 1817
Publicação original no livro: Die Nachtstücke
No Brasil: Coleção Novelas Imortais (Editora Rocco, 2010)
Autor: E.T.A. Hoffmann
Tradução: Ary Quintella
Organização e apresentação: Fernando Sabino
88 páginas

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