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Crítica | O Homem que Não Vendeu sua Alma

por Ritter Fan
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Penso que, quando os estadistas renunciam à sua própria consciência privada por causa de seus deveres públicos, eles levam seu país por um curto caminho para o caos.
– More, Thomas

Thomas More (ou Thomas Morus) foi um advogado, filósofo e autor britânico que, em 1516, publicou, em Latim, a sensacional sátira sócio-política Utopia em que construiu um estado-ilha ideal. Ele foi amigo e chanceler do rei Henrique VIII e Alto Chanceler do mesmo rei entre 1529 e 1532, quando entrou em choque com o monarca em razão do importante momento da história da Inglaterra em que o rei tornou-se, por decreto, líder da Igreja da Inglaterra de forma a poder anular seu casamento com Catarina de Aragão e, ato contínuo, casar-se com sua amante Ana Bolena.

Não faltam biografias e, principalmente, cinebiografias do rei e/ou de sua amante, mas O Homem que Não Vendeu sua Alma faz um recorte muito específico e foca quase que exclusivamente em Thomas More e em sua luta pessoal para manter sua integridade, virtude e, principalmente, fé inamovível em seu único Deus, dentro da máxima que determina que um homem não pode servir a dois mestres. Católico fervoroso, More, que nunca abertamente opôs-se ao seu amigo, recusou-se a fazer o Juramento de Supremacia exigido pelo rei e que basicamente deixava claro sua concordância com a atitude do monarca em separar-se do jugo do Papa, sofrendo por anos primeiro o completo ostracismo da corte e da sociedade e, depois, punições ainda mais severas.

Como é de se esperar, um filme com esse objetivo e, ainda por cima, baseado diretamente em uma peça de teatro que seu próprio autor, Robert Bolt, transformou em roteiro cinematográfico, simplesmente não poderia primar pela ação no sentido mais esperado da palavra. Ela inexiste aqui e tudo, absolutamente tudo, recai no colo do incomparável trabalho dramático de Paul Scofield, no papel principal.

O ator, que começou sua vida artística no teatro, onde permaneceu focado praticamente a vida inteira, apesar de ter também aparecido em alguns telefilmes, episódios de séries e filme cinematográfico, viveu Thomas More na peça de Bolt tanto no West End de Londres quanto na Broadway, em Nova York e foi a escolha do diretor Fred Zinnemann para viver o papel também nas telonas. No entanto, a produtora considerou que Scofield não tinha nome para atrair audiência para o filme, com Richard Burton e Laurence Olivier sendo considerados para o papel. No entanto, o cineasta insistiu em sua escolha, ajudado por Bolt, especialmente depois que ele havia levado para casa o Tony de Melhor Ator justamente por seu trabalho na Broadway como More, em 1962.

E essa escolha foi extremamente acertada. Scofield interpreta More com um vigor impressionante, demonstrando com olhares, gestos e pequenos trejeitos corporais uma latitude dramática que vai da alegria em ver sua esposa no final de um dia estafante, passando pela surpresa e leve – mas elegante – desgosto em ver sua filha com um pretendente luterano e pelo encontro com seu amigo e rei nos jardins de sua moradia, até a veemente negativa em endossar o posicionamento do rei sobre o divórcio e novo casamento sem a benção do Papa. Zinnemann, por seu turno, não perde a oportunidade de manter sua câmera sempre parada e mirada no rosto de Scofield em toda sua intensidade e profunda inteligência, construindo um personagem espetacular logo nos primeiros minutos da projeção, quando demonstra muito claramente sua integridade primeiro como advogado e, depois, como chanceler real.

Diria, sem muito medo de errar, que o trabalho do ator é um dos mais impressionantes trabalhos dramáticos da Sétima Arte, transformando um filme que é quase que completamente um teatro filmado e que, portanto, pode facilmente descambar para a monotonia, em uma obra realmente inesquecível, daqueles em que cada quadro com a presença de Scofield é um momento de se aplaudir. Sua presença é tão magnética e profunda, aliás, que todo o restante do elenco desaparece, até mesmo a espalhafatosa ponta de Robert Shaw como Henrique VIII e a assustadora micro-ponta do imponente Orson Welles como o Cardeal Wolsey. Mesmo os atores que tem mais presença de tela, como John Hurt como Richard Rich e Leo McKern como Thomas Cromwell, por melhor que sejam os atores – e são mesmo excelentes – minguam diante de Scofield e a retitude moral e ética de More.

Mas a equipe técnica de O Homem que Não Vendeu sua Alma também está de parabéns. Figurinos corretamente suntuosos vestem o elenco que passeia por cenários em locação e alguns poucos construídos especialmente para o filme que se fundem em um conjunto harmônico preciso que muito corretamente não tem nenhuma intenção de chamar atenção para si mesmos, deixando todo o espaço para que Scofield e o restante do elenco brilhem como devem brilhar. A fotografia de Ted Moore, conhecido por seu trabalho na franquia 007, faz as cores ressaltarem da mesma maneira que ele as suga na medida em que o drama de More torna-se cada vez mais sem saída, algo que a equipe de maquiagem e cabelo esmera-se também em apontar.

Retratando um dos mais significativos momentos da história britânica sob o ponto de vista de um grande homem, O Homem que Não Vendeu sua Alma é ao mesmo tempo uma aula de dramaturgia e Cinema e de estadismo em sua forma mais pura. Todo político ou pretendente a político deveria no mínimo ser obrigado a absorver as lições que o More de Scofield passa aqui (já que pedir que estudem Thomas More talvez seja demais para eles…). O mundo político com certeza seria melhor mesmo que apenas um décimo da moralidade e honestidade do personagem fosse internalizada.

O Homem que Não Vendeu sua Alma (A Man for All Seasons, Reino Unido – 1966)
Direção: Fred Zinnemann
Roteiro: Robert Bolt (baseado em sua própria peça)
Elenco: Paul Scofield, Wendy Hiller, Leo McKern, Robert Shaw, Orson Welles, Susannah York, Nigel Davenport, John Hurt, Corin Redgrave, Colin Blakely, Cyril Luckham, Jack Gwillim, Thomas Heathcote, Yootha Joyce, Anthony Nicholls, John Nettleton, Vanessa Redgrave
Duração: 120 min.

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