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Crítica | O Horla, de Guy de Maupassant

por Anthonio Delbon
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De onde vêm essas influências misteriosas que transformam em desânimo a nossa felicidade e a nossa confiança em angústia?

É dito que Guy de Maupassant (1850-1893) tenha escrito seu próprio epitáfio: Cobicei tudo e aproveitei nada – em uma tradução livre. O legado do escritor, visto principalmente nos contos de terror que inspirariam a literatura fantástica posterior, certamente passa pela abordagem da dualidade vista nesta frase. Entre o inexplicável, o intangível e uma sensação de dissolução, Maupassant nos prende do começo ao fim nas três versões do conto O Horla, sua obra mais famosa.

Oficialmente, o conto possui duas versões, as de 1886 e 1887. Em 1885, porém, Carta de um Louco praticamente prenuncia o que viria a tomar corpo nos anos seguintes. Trata-se, nas três versões, da história de um paciente que começa a ser perseguido incessantemente por uma criatura do além, ao qual dá o nome de Horla (há divergências em relação ao porquê de tal nome, ainda que a analogia com o francês hors-là faça sentido). A ladeira, permeada de paranoia, insensatez e alucinação, logo é descida por esse narrador que ora relata ao doutor (Carta de um louco), ora aos amigos de seu incrédulo médico (primeira versão), ora conta, semana por semana, a decadência de seu estado em um diário (segunda versão). Em todos, a fragilidade descrita por Maupassant denuncia o ápice de seu estilo.

(…)o pensamento doente devora a carne do corpo mais do que a febre ou a tuberculose.

Herdeiro literário de Gustave Flaubert, o autor utiliza da banalidade para traçar a profundidade trazida por um estado de crescente insânia. Maupassant faz parte do rol de contistas com estilo semelhante ao mestrado por Anton Tchekov, seu contemporâneo, mas utiliza uma chave schopenhauriana em seus contos que parecem se passar na batida do pêndulo entre tédio e desejo, tão central na filosofia do pensador alemão. A própria noção do Horla serve como perfeita desculpa para Maupassant escancarar a precariedade humana, biológica e ontológica, que parece sempre gerar feridas nas diversas tentativas de alcançar – e entender – sua própria natureza.

Ao trabalhar o evento central de três formas diferentes – duas, se considerarmos a semelhança da primeira versão com o conto que o antecede – o escritor traça, na primeira versão, um relato que prioriza a nossa sensação, como se fizéssemos o papel dos médicos interlocutores que sentam para ouvir a história de um demente. Já no diário em si, Maupassant constrói com calma cada elemento, enriquecendo o conto em detalhes e personagens coadjuvantes ao mesmo tempo em que intensifica o horror, posto que o fatídico encontro com o tal Horla é postergado com o fim de criar um clímax muitíssimo assustador e bem-vindo.

Alguns temas são recorrentes: a insuficiência humana, mostrada em um primeiro plano por meio da incapacidade dos nossos órgãos e dos nossos sentidos, logo revela a insuficiência humana por si. A hegemonia do homem, tratada aqui como metáfora às mais diversas linhas de pensamento que “botam fé” na capacidade humana – racional, intelectual, revolucionária, erudita etc. – é denunciada quando o metafísico aparece como eterno atormentador. Rasgando a confiança humana em si própria e a despedaçando sem dó, esse insondável, que pode surgir – e normalmente surge – em belas manhãs, daquelas capazes de fazer abrir um sorriso e estufar o peito do mais pessimista, nubla a visão do homem e racha o limite do sólido e do líquido, expondo o protagonista, até então “normal”, à incerteza e ao vazio, retratados por Maupassant com extrema lucidez, em um estilo sem afetações.

Dentro de algum tempo, todos saberão eu tenho um espírito tão são, lúcido e perspicaz quanto o dos senhores, infelizmente para mim, para os senhores e para toda a humanidade.

Se tal lucidez – passada ao protagonista pelo autor – vem das noites insones de ambos, pode-se especular. Maupassant, que contraíra sífilis antes dos trinta, passou os últimos anos de sua breve vida tentando se matar em um manicômio. Como todo suicídio – ou tentativa de – pode ser visto sob o véu da racionalidade banal irrefletida e insensível, é fácil considerar tais contos literalmente coisas de um louco, daquele modo com que se procura, geralmente, encerrar qualquer discussão. O grande trunfo de Maupassant, todavia, para aqueles que se deixam minimamente ser tomados por seu gênio, é abrir, exatamente dos pontos da loucura, da solidão, do medo da morte e até do sono, um fecundo retrato da condição humana traçado por um viés cético, trágico e corajoso.

O Horla não é só um conto “vampiresco”. É o fantástico sendo utilizado como metáfora, da forma que as melhores ficções, científicas ou não, são abordadas nos cinemas hoje em dia. Maupassant indica o problema, mas fica longe de proferir qualquer solução. Olha para o fantástico, o alheio, mas procura nele si mesmo. Inquieto, enfim, transforma a própria inquietude em interrogação, apenas apontando-a como sintoma de uma doença de nascença.

Digo-lhes que ele chegou. Ele próprio vagueia, inquieto como os primeiros homens, ignorando ainda a sua força e poder que muito em breve conhecerá.

A pintura utilizada é de Guillaume Sorel, ilustrador francês contemporâneo.

O Horla (Le Horla) – França, 1886 (primeira versão) e 1887 (segunda versão)
Autor: Guy de Maupassant
Publicação no Brasil: Contos Fantásticos: O Horla e Outras Histórias
Tradutor: José Thomaz Brum
Editora: L&PM Pocket
Ano: 2016
144 páginas

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