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Crítica | O Idiota (1951)

por Luiz Santiago
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Akira Kurosawa conseguiu desenvolver rapidamente o domínio sobre as regras do cinema. Cinco anos após a sua estreia em A Saga do Judô (1943), ele já apresentava a sua primeira obra formalmente madura, em O Anjo Embriagado (1948), e viria com a sua abertura para uma obra-prima no ano seguinte, com Cão Danado. A visão dos Estúdios para com o diretor era positiva, tanto que ele já tinha controle sobre a forma e conteúdo sua produção desde Não Lamento Minha Juventude (1946), mas isso não o excluía de ser atingido por cobranças vindas de maus resultados dos filmes, sempre que eles acontecessem. Antes que Rashomon (1950) voltasse de Veneza com o Grande Prêmio, Kurosawa foi atingido em cheio pela má recepção de sua película seguinte, O Idiota (1951), uma adaptação da obra homônima de Dostoiévski, que poderia ter sido o fim da promissora carreira do diretor, como ele mesmo escreveu em suas memórias:

Depois de Rashomon, fiz um filme baseado na obra de Dostoiévski, O Idiota. Era Hakuchi (1951), que fiz para a companhia Shochiku. Esse O Idiota foi uma ruína. Confrontei-me diretamente com a direção do estúdio. Quando as críticas surgiram, pareceram refletir a atitude da companhia para comigo, como um espelho; sem exceção, elas foram sarcásticas. Na esteira desse desastre, a Daiei retirou sua proposta para que eu fizesse um novo filme.

Os problemas na produção de O Idiota estavam em evidência assim que as filmagens terminaram. Kurosawa tinha em mente uma adaptação fiel aos acontecimentos do livro, modificando apenas questões relacionadas ao tempo e ao espaço onde as coisas aconteciam. Todavia, o primeiro corte da obra teve 4h30 de duração, o que foi negado imediatamente pelo Estúdio, que obrigou o diretor a reduzir a duração e, em consequência disso, obrigando-o refilmar algumas partes e reescrever outros pontos do roteiro para que tudo se encaixasse nas 2h46 que o filme acabou tendo, na versão comercializada. O resultado não foi uma obra-prima, até porque há alguns desencontros narrativos para se levar em consideração, mas mesmo assim, O Idiota é uma obra de destaque na filmografia de Kurosawa, um filme que mostra de maneira muito poderosa a destruição de uma alma pura.

A história escrita pelo próprio diretor, ao lado de Eijirô Hisaita nos traz Kinji Kameda, um homem que ao ser acusado injustamente de traição, é condenado ao fuzilamento, mas vê sua sentença revogada nos últimos instantes. O choque faz com que ele tenha ataques de epilepsia e se torne demente. Todavia, perceberemos que essa demência é diferente daquela que normalmente conhecemos. A única “idiotice” de Kameda é ter o coração puro em um mundo selvagem. Como não consegue diferenciar entre o bem e o mal, ele acaba não tendo muito controle de suas escolhas, já que todas para ele são feitas em prol do bem e do amor ao outro. A incapacidade de odiar e guardar rancor também será uma agravante para a sua vida e abrirá as portas para a sua morte.

A ciranda de amores e desamores que pontua a narrativa do filme é dividida em duas partes e mostra de forma quase épica as modificações sentimentais pelas quais todos passam. Alguns negam o que sentem, outros correm em busca do que lhes é impossível ter, outros ainda doam o que normalmente pegariam para si. Kurosawa encontrou muitas semelhanças entre os personagens de Dostoiévski e os seus próprios, uma vez que a busca por algo, o desejo incontido e a hostilidade do mundo contra os sentimentos verdadeiros são pontos presentes tanto na obra do japonês, quanto na obra do mestre russo.

Em meio a essas buscas, algo se levanta e se destaca na obra: a urgência da realização. Em algum momento da primeira parte do filme, os personagens sentem a imperiosa necessidade de realizar seus desejos, acabar com as frustrações, serem livres e felizes por pelo menos um curto espaço de tempo. Enquanto essa necessidade se destaca, percebemos que as tentativas para conseguir satisfazê-la são nulas, o que aos poucos paralisa o ânimo dos protagonistas, que na fase final do filme se entregam ao desespero, seja ele mudo ou manifesto violentamente. Kameda, em sua visão amorosa e pura da humanidade, não compreende — porque vê tudo em belas cores — e não escolhe nada, já que não consegue diferenciar as virtudes morais daquilo que lhe é apresentado. Nesse caso, a maldade parece reinar e ceder mais liberdade que a bondade. O bom não escolhe, porque aparentemente não há nada para escolher, é tudo a mesma coisa. Essa angustiante forma de visão se espalha pelo filme na reta final, e as trágicas e últimas sequências acabam selando de vez essa visão.

Interpretado por Masayuki Mori, que já havia feito o samurai assassinado em Rashomon, Kameda é um personagem impressionante. Dócil e portador de tremenda bondade, ele inspira o riso e o desprezo em algumas pessoas. O ator deu um contorno psicológico perfeito ao personagem, principalmente no olhar, na postura das mãos — sempre segurando o sobretudo –, na voz e nas reações nervosas em diferentes partes do filme. Também os personagens de Toshiro Mifune e principalmente de Setsuko Hara são atrativos cênicos impagáveis durante a projeção.

O Idiota é uma obra profunda e realizada com esmero técnico impressionante. A fotografia e a direção de arte se destacam em meio à equipe técnica e conseguem um ótimo resultado na adaptação dos espaços diferentes para cada um dos personagens, como a sombria casa de Denkichi Akama ou a luxuosa residência de Taeko Nasu, a proclamada vilã desde o início, que tem uma postura e um fim muito diferente do que esperávamos. Kurosawa nos apresenta uma obra rica de significados existenciais e expõe os dois lados da moeda, aquele do mundo em que vivemos, avaro, vingativo e maldoso; e o da raridade humana que é o protagonista do filme, aquele que por confundir amor com pena, acaba não percebendo os abismos de rancor e ódio que surgem abruptamente a cada esquina, e sem querer ou merecer, tropeçam à beira de um deles, selando de uma vez por todas o seu destino.

O Idiota (Hakuchi) — Japão, 1951
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Akira Kurosawa, Eijirô Hisaita (baseado na obra de Fiódor Dostoiévski)
Elenco: Setsuko Hara, Masayuki Mori, Toshirô Mifune, Yoshiko Kuga, Takashi Shimura, Chieko Higashiyama, Eijirô Yanagi, Minoru Chiaki, Noriko Sengoku, Kokuten Kôdô, Bokuzen Hidari, Eiko Miyoshi, Chiyoko Fumiya, Mitsuyo Akashi, Daisuke Inoue
Duração: 166 min.

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