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Crítica | O Incal: A Quintessência – Planeta Difool

por Luiz Santiago
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SPOILERS!

O Incal é uma obra que deveria ver com o seguinte aviso: SE VOCÊ NÃO TEM PACIÊNCIA PARA SURREALISMO, MISTICISMO E MESSIANISMO, NÃO LEIA ESSA SAGA!!! E isso não é exagero algum. Após chegar ao final desse 6º livro da série, pude entender a loucura completa de Alejandro Jodorowsky e a genialidade de camaleão de Moebius, que segue aqui um estilo de arte ainda mais expansivo, ocupando todas as páginas, a exemplo dos conceitos de diagramação nas sagas de quadrinhos americanos que ele mesmo disse tê-lo influenciado desde A Galáxia Que Sonha, mas que aqui encontra o seu clímax.

Na introdução à reedição do volume na França, Moebius prefaciou:

Eu desenhei o último álbum do Incal – em particular sua primeira metade – num estilo, para mim, muito “americano”. Usei esboços de página completamente desvairados, com muitos sangramentos. Creio que, antes, eu estava muito preso ao esboço do quadrinho retangular mais tradicional por uma pura e simples questão de rotina. Isso foi uma coisa que eu, literalmente, nunca tinha ousado tentar fazer.

Voltando aonde tudo começou, o universo de Duna, Jodorowsky e Moebius finalizam a história de uma maneira mista de sacanagem e crueldade. Alguns até diriam anticlimática, mas essa é uma visão apenas superficial para a forma como a saga termina. Se o leitor conhecer o produto que está lendo, poderá chegar a uma conclusão mais profunda sobre as motivações desse final, especialmente se entender que o conceito de noir e conto de fadas são os elementos bases para a construção da obra.

Vejam que existem narrações de cenários, os personagens lidam ou aceitam [quase] facilmente todos os absurdos que lhes acontecem ou que o Incal lhes propõe e há uma composição cíclica constantemente trazida à tona pelo autor. Claro que Jodorowsky escolheu esse modelo narrativo porque não tinha experiência de escrita, mas em O Incal, mesmo de forma caótica, completamente maluca e às vezes confusa, ele não falha de maneira a fazer a obra perder qualidade. Seu maior escorregão está no tomo III, O Que Está Embaixo, e centra-se unicamente na Floresta de Cristal. Todo o restante funciona muitíssimo bem dentro dessa linha “B” do noir misturado com contos de fadas e os elementos citados no primeiro parágrafo.
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Éter  ou  Quintessência
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Os dois últimos álbuns do Incal chamam-se A Quintessência e dividem-se em duas partes: A Galáxia Que Sonha e Planeta Difool. Mas afinal, o que é “quintessência”?

Na mitologia, era o “ar dos deuses”, a matéria que os deuses respiravam, diferente da dos mortais. Para Aristóteles, era o 5º Elemento da natureza, sua composição não palpável, diferente em fluxo e composição se comparado aos outros 4 elementos. A Física do século XIX trouxe isso à tona, na defesa de que o éter seria o “meio de propagação da luz”, mas no século XX a teoria foi deixada de lado, legada mais ao misticismo do que a uma racionalização sobre a inexistência de vácuo na natureza. Os hindus utilizaram a ideia do quinto elemento como conceito para uma das práticas medicinais mais antigas do mundo, a medicina Ayurveda, que traz a Teoria dos Cinco Elementos (ou Pancha Mahabhutas). Em O Incal, essas ideias aparecem fundidas em uma coisa só e aplicadas ao ciclo infinito, ao eterno retorno, ao fluir ou renascer do Universo, à ideia de que o fim pré-existe.

Elementos-Gregos

Se toda a jornada desse épico de ficção científica, metafísica, filosofia e símbolos de alquimia e toda sorte de esoterismo foi para nos mostrar um homem preso em um loop de criação (ou um ciclo perpétuo), é natural que haja inúmeras referências a entidades místicas ou de aparência religiosa durante o volume. E talvez seja aí que alguns leitores esbarrem e não consigam avançar ou ter empatia em relação à obra. Porque na superfície estamos diante da história de um ‘detetive Classe R’ que, por uma série de eventos pouco comuns em sua vida, recebe o Incal de um Berg moribundo e passa a ser perseguido por Bergs, humanos (ligados ao governo ou não), guerrilheiros do Amok (liderados por Tanatah) e pela Tecnoirmandade (liderada pelo Tecnopapa) que adora o Incal Negro. Mas esta é apenas a superfície.

Quem disse que um processo místico é necessariamente algo belo e tranquilo?

Um olhar um pouco mais profundo nos mostra que outros eventos, os mais importantes, estão em andamento e se cruzarão com esses dados superficiais. E que eventos paralelos são esses? Bem, Animah se disfarça de homeoprostituta para ter um filho com John Difool, Solune, que representa as maiores contradições humanas do Universo, herdadas de sua mãe e seu pai. Por esse motivo ele é um amálgama das duas partes do Incal. Com o nascimento de Solune, o propósito espiritual de Animah está completo: fundir os dois Incais que originalmente eram guardados por Animah (Incal Luminoso), irmã sua gêmea Tanatah (Incal Negro). Por esse ponto de vista, concluímos que todo o Incal é a crônica do momento em que esses opostos se combinam, em que uma misteriosa conjunção se apodera deles e dá início a novos eventos ao mesmo tempo que acelera eventos já em andamento.
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O Eterno Retorno 
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O maior dos pesos – E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: ‘Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!

Friedrich Nietzsche
A Gaia Ciência

Mesmo algumas pessoas que não leram O Incal sabem que parte dos personagens são representações de cartas do tarô como O Louco (John Difool), O Sol + A Lua (Solune), O Imperador + A Imperatriz (Imperadortriz), O Hierofante (Tecnopapa e Tecnocentrador, no caso deste último, apenas a sua “versão humana”) e A Torre (Nave Estelar e Vitavil H2O). A trama também incorpora outros elementos e símbolos culturais/religiosos como as figuras de Moisés (Metabarão), Cristo (John Difool, a partir de O Que Está Embaixo), Virgem Maria + Maria Madalena (Animah e Protorrainha); Caixa de Pandora + Santo Graal + Ying e Yang (Incal) e Vida e Morte (Animah e Tanatah), que fecham o ciclo imediato da saga nos trazendo para a ideia nietzschiana do Eterno Retorno.

O conceito de Eterno Retorno é a base cruel, cínica e sacana do roteiro de Jodorowsky para a saga do Incal e principalmente para a vida do coitado John Difool, que não sabemos se admiramos ou se desejamos que ele morra, por piedade. Mas é fascinante a forma como o autor relaciona o aspecto filosófico a um gancho quase metalinguístico com a própria obra, cujo ciclo ganha ares de sonho. Quebrando linearidades e lógica narrativa, O Incal estabelece uma jornada de duplicidades (perceba que todos os indivíduos possuem duplos, ou como igual ou como oposição) que alcança inclusive os valores de cada um, mesmo de Difool, que vive em constante negação de seu papel na história e resiste o tempo inteiro, embora acabe cedendo algumas vezes.

Moebius recriando o Universo.

Esta resistência talvez seja uma forma de protesto inconsciente do personagem, que se ressente com amargura de não fazer o que o bebê-Universo, nos moldes de 2001: Uma Odisseia no Espaço lhe disse no começo do fim do começo de tudo, outra vez: “você deve viver de novo para aprender […] aprender a se lembrar, John Difool“.

O Incal merece todos os louros e admiração que tem. Com um enorme Universo (o Jodoverse) para ser explorado e possibilidades infinitas embora encerradas dentro de um ciclo único de vida, morte e renascimento, a saga nos mostra como a cada novo tempo, esquecendo-se do passado, o homem destrói, corrompe e torna inabitável o seu próprio meio de vida, criando a Grande Escuridão. A epopeia de toda uma existência para salvar um Universo que fará tudo de novo. Ou será que não? A angústia, raiva e ansiedade que sentimos ao final de Planeta Difool é acompanhada por uma reflexão sobre o Eterno Retorno, sobre possibilidades de existência, sobre a surpresa do futuro, a amarga dúvida sobre o que vem após a morte. E é aí que percebemos que a saga do Incal é uma metáfora para sobre a vida. Sobre o nosso principal medo. Sobre o nosso grande mistério.

O Incal: A Quintessência – Planeta Difool (La cinquième essence – La planète Difool) — França, 1988
No Brasil: Editora Devir, 2011 (Incal Integral)
Roteiro: Alejandro Jodorowsky
Arte: Moebius
50 páginas

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