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Crítica | O Leão de Sete Cabeças

por Luiz Santiago
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Glauber Rocha saiu do Brasil mais ou menos com as coisas arranjadas para realizar um filme com investimento da Itália e da França, países onde era admirado pelo seu trabalho em Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Diante do orçamento e da liberdade criativa, o diretor resolveu trazer para as telas um enredo que seguisse o caminho político dos filmes que dirigira em terras tupiniquins, porém, com um olho mais crítico e mais simbólico focado na História da colonização, desta feita, a africana. Mas… o que há de tão especial em O Leão de Sete Cabeças no que diz respeito ao seu tema central?

Existem muitos filmes que trabalham o impacto da colonização na África, desde o seu modelo clássico e a destruição da cultura local (As Estátuas Também Morrem), passando por uma visão que trabalha o ontem e o hoje, expondo “benefícios práticos” da colonização de forma irônica e o modo de vida da população de alguns lugares do enorme continente (África 50); um modo de enxergar a violência das ocupações e o que a história dos sobreviventes e descendentes tem para nos dizer (Memória Entre Duas Margens); o impacto da luta armada contra os colonizadores (Emitaï), até um relevo antropológico plural, passando por questões sociais de peso, religião, sobrenatural e organização política (O Último Voo do Flamingo). Todas essas obras possuem um olhar particular sobre o continente africano, todos eles mostram um processo político-social em andamento ou em fase final, mas, raramente, a origem cronológica deles de maneira dinâmica e crítica. Pois é essa a grande diferença de O Leão de Sete Cabeças. Glauber Rocha se preocupa com o núcleo da História, a semente da colonização.

Teórico de um cinema político de interferência prática, da luta contra a dominação de todos os tipos e tempos e adepto a uma movimentação de caráter popular e engajado na mudança da Nação, Glauber Rocha não deixa de colocar nesta obra tudo aquilo que ele não tivera a oportunidade — ainda — de explorar em um filme sobre alguma situação de opressão popular ou perseguição a manifestantes aqui no Brasil.

Se olharmos para Barravento, por exemplo, veremos uma mensagem positiva ao final pelo menos para um personagem (enquanto os outros estão entregues às suas raízes de caráter alienativo). Em Deus e o Diabo, o diretor se dispõe a retratar um Brasil escravo de suas tradições e refém de uma religiosidade opressora, muitas vezes corrupta e que acaba vencendo a iniciativa de mudança vinda de um oprimido qualquer, uma situação que fica ainda mais evidente em O Dragão da Maldade. Não de forma diferente, Glauber trouxe a manifestação política como centro de sua narrativa em Terra em Transe, e, mesmo na fraca continuação desta trama em Cabeças Cortadas, a relação de poder ainda está lá. Todavia, o que não vemos destacado nos enredos destes filmes (apenas aludido em Terra em Transe, muito rapidamente), é o início de toda a situação presente pela qual esses espaços geográficos e atores sociais passam, do poder direcionador da igreja, da força dos colonizadores, das empresas, da estupidez popular e do processo revolucionário. Isso só aparece pela primeira vez como tema central de um filme do diretor em O Leão de Sete Cabeças, talvez porque o tema fosse propício a esse recorte na investigação fílmica.

A fita acompanha a jornada de um padre (Jean-Pierre Léaud meio perdido, mas bastante convincente) caminhando pelo Congo, algumas vezes levando uma multidão consigo, entregando um revolucionário aos colonizadores e evangelizando uma prostituta de nome Marlene, a quem julga parte de toda a “corrupção” local e para quem tem “planos crucificatórios” no final da película.

O filme começa extremamente falho, com um Glauber Rocha irreconhecível na direção, apostando em uma repetição pretensiosamente simbólica de cenas, planos longos de eventos de isopor e ausência de qualquer ligação lógica entre os blocos dramáticos. Mas passados os primeiros 15 minutos, vemos o rumo do filme mudar para algo maravilhoso, um estágio que carrega bem a marca do diretor. Entendamos rapidamente que o filme, nesse ponto, pode ser visto em três blocos: a África colonizada, a África se descolonizando e a África sendo descoberta, ocupada ou invadida, processo inicial que levaria, numa linha histórica, ao ponto nº1. Isso nos permite ver como o roteiro estabelece papéis alegóricos e perfeitamente escritos para o Zumbi, para o Revolucionário, para o Governador europeu e o “Presidente” local (Sr. Xobu), além de todos os principais colonizadores do continente-mãe.

O texto carrega um poder político notável, pelo menos em todo o seu desenvolvimento. O diretor percorre situações diversas e tomadas de poder através dos agentes históricos e da História da África sem que precise trocar figurino ou alterar o cenários. Essa força só diminui na reta final, não porque o filme adota a mesma postura ininteligível e pouco útil das primeiras cenas, mas porque corta, de maneira rápida demais, os meandros narrativos pelos quais tão bem caminhava.

O Leão de Sete Cabeças foi um marco na carreira de Glauber Rocha, um filme que definiria sua visão política mais investigativa; cronológica, por assim dizer, nas obras seguintes, mesmo em situações mais particulares e pouco louváveis como é o caso de Cabeças Cortadas. A despeito do começo irreconhecível e de um final pouco trabalhado pelo diretor, O Leão se sustenta bem e tem uma figuração final positiva para o público, com uma forte mensagem e poderosas imagens para ilustrar uma situação que vem se repetindo ao longos dos séculos: a gênese da dominação de um povo.

O Leão de Sete Cabeças (Der Leone Have Sept Cabeças) – Brasil / Itália / França, 1970
Direção: Glauber Rocha
Roteiro: Gianni Amico, Glauber Rocha
Elenco: Rada Rassimov, Giulio Brogi, Gabriele Tinti, Jean-Pierre Léaud, Aldo Bixio, Baiack, Reinhard Kolldehoff, Hugo Carvana, Segolo Dia Manungu
Duração: 103 min.

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