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Crítica | O Médico e o Monstro (1931)

por Rafael Lima
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A obra máxima sobre a dicotomia humana, O Médico e o Monstro, publicada por Robert Louis Stevenson em 1886 é um dos romances góticos de terror mais adaptados da história do cinema, sendo superado apelas pelo Drácula de Bram Stocker, e pelo Frankenstein de Mary Shelley.

Baseado no romance de Stevenson, e na peça de teatro que adaptou a obra escrita, por Thomas Russell Sullivan, o roteiro acompanha o brilhante Dr. Jekyll (Fredric March), um cientista que acredita poder isolar o lado “mau” do ser humano, deixando apenas o que é bom. Ao testar a fórmula em si mesmo, ele libera a personificação de seu lado maligno, o Sr. Hyde (Também vivido por March), que passa a aterrorizar as ruas de Londres.

Quando a Paramount Pictures decidiu levar a sua versão do clássico romance às telas de cinema, em 1931, como uma resposta ao sucesso que a Universal vinha tendo com seus monstros, a história de Jekyll e Hyde já havia ganhado algumas adaptações cinematográficas, sendo a mais famosa a versão estrelada por John Barrymore em 1920, ainda no cinema silencioso. Mas esta versão de 1931, comandada por Rouben Mamoulian não se tornaria somente uma das mais famosas versões do conto de dualidade humana de Stevenson, como também seria um dos grandes responsáveis por definir como o Dr. Jekyll e o Sr. Hyde seriam vistos na cultura pop em geral.

O roteiro escrito a quatro mãos por Samuel Hoffenstein e Percy Heath retrata Henry Jekyll como um homem essencialmente bom, mas não um santo. O bom doutor com certeza é apaixonado por sua noiva Muriel (Rose Hobart), uma moça pura de “boa família”, mas o fato do pai linha dura da jovem insistir em adiar a data do casamento por meses, deixa o cientista nervoso, já que ele deve esperar ainda mais para consumar o seu amor (leia-se, transar com a mulher que ama). É nesse sentido, que Ivy Pearson (Mirian Hopkins) uma cantora de cabaré e prostituta surge como tentação final para Jekyll, após ele salvá-la de um cliente particularmente violento. A moça finge estar machucada para ele levá-la até o quarto, onde ela tenta seduzi-lo, e rouba um beijo do médico, que embora goste, educadamente a afasta. Pouco depois, Jekyll é repreendido por seu amigo Lanyon (Holmes Herbert) por confessar ter gostado do beijo.

Durante essa meia hora inicial, o roteiro já brinca com a dualidade representada pelas figuras de Muriel e Ivy, sem apresentar julgamentos morais por suas condutas, pelo menos aos olhos de Jekyll, pois é a sociedade que faz tal julgamento através dos comentários dos outros personagens sobre as virtudes de Muriel e a “libertinagem” de Ivy. O filme de Mamoulian parece colocar a repressão que a sociedade londrina conservadora exerce sobre Jekyll como o combustível que ira gerar Hyde. Os realizadores fogem da leitura simplista de Hyde como sendo simplesmente o lado maligno de Jekyll, e sim como a liberação violenta de todos os impulsos reprimidos do ser humano que poderiam ser expressos de forma saudável se não fossem tão reprimidos.

A ótima direção de Mamoulian acompanha a proposta do roteiro e até mesmo certa cumplicidade com o protagonista. O filme abre com uma cena onde a câmera mantida em primeira pessoa, no caso, o Dr. Jekyll, e só vemos o protagonista quando ele se olha no espelho. Dessa forma, o diretor demonstra sob os olhos de quem acompanharemos a história, o que ajuda o público posteriormente a perceber as citadas hipocrisias e repressões da sociedade londrina observada por Jekyll, já que o início do filme nos coloca em seu ponto de vista. É apropriada então, a rima visual feita pela direção ao colocar a primeira aparição de Hyde também feita através de um plano de ponto de vista que revela a figura do monstro no espelho, seguido de um grito excitado de “Livre afinal!”. A sequência de transformação de Jekyll em Hyde (a primeira, em particular) soa impressionante para 1931, um processo que ator, diretor e maquiador fizeram questão de manter em segredo por décadas.

O visual do Sr. Hyde, criado pelo maquiador Wally Westmore em conjunto com o diretor remete ao homem de Neanderthal, mas com dentes pontiagudos e protuberantes, dando ao vilão uma aparência realmente monstruosa, que se perpetuaria no imaginário popular. A aparência animalesca de Hyde reflete a liberação dos impulsos primitivos de Jekyll, mas sem qualquer grau de civilidade ou empatia. Hyde só se preocupa com o próprio prazer, e está disposto a destruir qualquer um que tente atrapalha-lo, até o ponto em que destruir o outro também se torna um prazer.

Ivy torna-se o alvo principal do monstro, que passa a intimidar a moça até tê-la nas mãos. Fica claro que apesar de já ter lidado com homens violentos antes, como vemos em sua cena de apresentação, a garota não está preparada pra lidar com alguém como Hyde. É triste, e ao mesmo tempo aterrorizante a forma como o vilão vai torturando Ivy física e psicologicamente até transformá-la apenas em uma sombra da jovem confiante que conhecemos no começo do filme.

Fredric March fez por merecer o Oscar de melhor ator que levou pelo papel duplo de Jekyll e Hyde (que curiosamente ocorreu em um dos raros casos de empate da cerimônia, já que Wallace Beery também foi premiado). March vive Jekyll como um homem descente, e bastante identificável. O bom Doutor é interpretado pelo ator como uma pessoa muito à frente de seu tempo, retratando com sutileza o seu desgosto com as hipocrisias, ideias de moral e bons costumes da sociedade britânica, e a culpa que passa a corroê-lo quando toma conhecimento dos crimes de sua persona maligna. Quanto a Hyde, March não deixa que a excelente maquiagem faça o trabalho sozinha e dá ao personagem características verdadeiramente bestiais. O Sr. Hyde move-se de forma quase simiesca e, quando está com raiva, tenta conter a respiração pesada. Ao mesmo tempo, o vilão é dono de um sadismo horripilante, e a cena em que tortura Ivy psicologicamente, abusando dela física e psicologicamente, primeiro fazendo uma série de perguntas que ele sabe que ela não pode responder sinceramente devido às consequências que sofreria, e depois forçando-a á cantar causa um incômodo surpreendente para um filme de terror mainstream deste período.

Miriam Hopkins também merece aplausos pela forma como constrói Ivy Pearson. Quando conhecemos Ivy, percebemos uma mulher que não se deixa dominar facilmente, e que se sente livre para ditar as regras do jogo da sedução, como vemos na excelente cena em que tenta seduzir Jekyll, poder reforçado pela lente de Mamoulain, que faz a imagem da perna nua de Ivy balançando para fora do edredom perseguir o protagonista. A atriz executa de forma competente a transição desta Ivy mais dona de si para a mulher totalmente aterrorizada que fica a mercê de Hyde, com medo de praticamente cada movimento daquele homem. A cena em que ela enfim desaba em lágrimas após ser forçada a cantar uma musica então alegre é de uma angustia de partir o coração.

Lançado pouco antes da liberação do infame Código Hayes, O Médico e o Monstro de Rouben Mamoulian é um filme muito maduro para seu tempo, ainda mais quando comparado às produções de horror mais famosas da Universal produzidas no mesmo período. A obra lida com temas como a repressão sexual de uma forma bastante direta para a década de 30, além das questões de ligação entre corrupção e poder, refletidos na força cada vez maior que Hyde passa a exercer na vida de Jekyll. Não é de se surpreender que em reexibições posteriores, o filme tenha ganhado cortes. Felizmente, como o próprio Sr. Hyde, o filme na íntegra se recusou a permanecer nas profundezas e hoje podemos ter acesso à versão completa de uma das melhores adaptações da obra de Stevenson, e que ajudou a cimentar Hyde entre os grandes monstros da cultura popular.

O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde) EUA, 1931
Direção: Rouben Mamoulian
Roteiro: Samuel Hoffenstein e Percy Heath, baseado em Romance de Robert Louis Stevenson e peça teatral de Thomas Russell Sullivan.
Elenco: Fredric March, Miriam Hopkins, Rose Hobart, Holmes Herbert, Halliwell Hobbes, Arnold Lucy
Duração: 98 min.

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