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Crítica | O Nevoeiro, de Stephen King

por Guilherme Coral
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Arte: Aeron Alfrey

estrelas 4,5

Publicado originalmente em 1980, como parte da antologia de terror Dark Forces, da editora Viking Press, O Nevoeiro é um dos contos mais celebrados de Stephen King, tendo ganhado ainda mais popularidade em razão de sua adaptação cinematográfica por Frank Darabont, em 2007, obra que acabou adquirindo o status de cult do gênero. O que mais nos surpreende com a leitura dessa obra é como ela se mantém atual mesmo já tendo mais de trinta anos, provando ser um texto verdadeiramente atemporal, que dialoga com a própria essência do medo no ser humano, este que tão facilmente pode provocar atitudes extremas ou impensáveis.

King inicia seu conto, narrado em primeira pessoa por David Drayton, sem perder muito tempo. O narrador-personagem nos fala sobre a grande tempestade que assolara a região norte da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos, que seguira uma estranha onda de calor. No dia seguinte, David, sua esposa Stephanie e seu filho, Billy, percebem a chega de uma névoa e, ignorantes ao que ela traria consigo, continuam os seus afazeres normalmente. Somente um bom tempo depois, quando estava no mercado com seu filho, o protagonista, junto dos outros cidadãos da pequena cidade, percebem que há algo fora do comum ali, enquanto o nevoeiro rapidamente engole todo o local, isolando cada ambiente fechado da cidade. Não demora para que relatos sobre seres na neblina apareçam, ao passo que a situação vai ficando cada vez mais desesperadora.

É importante perceber, ao ler O Nevoeiro, que a narrativa de King não centra nos seres da névoa ou nela em si e sim no impacto desse acontecimento sobre os diferentes personagens apresentados. O autor pinta um quadro verdadeiramente diversificado, com cada um dos indivíduos confinados àquele lugar demonstrando atitudes específicas, aspecto que dialoga com as diferentes facetas de nossa atual sociedade. Enquanto uns duvidam da possibilidade de haver monstros ali fora, outros começam a acreditar em uma espécie de intervenção divina e outros, por sua vez, mantém-se na “normalidade”, enxergando tudo com um olhar mais realista – para nosso desconforto, esse é o caso do protagonista.

E por que desconforto? Pois muitas das situações criadas pelo autor visam trazer justamente isso ao leitor. Como uma pessoa mais centrada, David Drayton funciona como a voz da razão nesse cenário, muitas vezes sendo contrariado pelas pregações apocalípticas da senhora Carmody – que funciona como uma óbvia crítica ao extremismo religioso – ou pelo irritante ceticismo de Brent Norton, seu vizinho, que representa o outro lado da moeda. São esses conflitos internos que, aos poucos, vão demonstrando ser perigos maiores do que o nevoeiro de fato, com King, a cada página, deixando bem claro o quanto a mente humana pode ser subvertida nos momentos de crise. No meio dessa crescente loucura, o protagonista funciona como aquele que verdadeiramente nos representa, proporcionando, assim, a imediata aproximação do leitor com o protagonista, permitindo que torçamos por ele de maneira mais enfática.

Mas há um grande porém nisso tudo. Enquanto a narrativa em primeira pessoa funciona plenamente para nos envolver nessa história, possibilitando que nos importemos mais com o personagem central, entendendo sua linha de raciocínio e tendo consciência das pontuais mentiras contadas a fim de manter o ânimo do grupo de pé, ela causa um notável problema. Visto que a história já começa como um relato em forma de retrospectiva, sabemos desde cedo que o personagem sobreviverá do início ao fim da história, no máximo podendo encontrar sua morte na derradeira página, já no presente. Isso acaba tirando boa parte da tensão em certas passagens do livro, principalmente naquelas que focam em ataques de criaturas. Felizmente, King sabe muito bem nos aproximar de outros personagens para se esquivar desse buraco no meio da estrada.

Mesmo com esse problema em mente, logo antes da metade do livro já sabemos que isso representa um pequeno detalhe, visto que o terror dessa obra se sustenta pela atmosfera construída, muito similarmente às histórias de H.P. Lovecraft. Para criar isso, o autor sabiamente revela somente o necessário, jamais estendendo-se em suas descrições, deixando, portanto, muito a cargo de nossa imaginação, como todo bom autor de obras de terror deve fazer. Essa ausência proposital de grandes revelações vale tanto para os seres da névoa, quanto para a origem desse fenômeno em si, com o escritor somente pontuando o conto com detalhes aqui e lá sobre o que pode ter causado tudo isso, detalhes esses que, curiosamente, começam a aparecer, descompromissadamente, desde as páginas iniciais.

Esses ocultamentos da “verdade” por trás do evento, claro, dialogam com a própria maneira como o conto é estabelecido, funcionando, como já dito, como um relato em forma de flashback. Assumindo, desde cedo, que o narrador funciona como o escritor dessa história, King permite-se manter um ritmo mais acelerado, porém orgânico, que soa como se o próprio protagonista estivesse se lembrando de cada um dos eventos. Com parágrafos curtos e boa presença de diálogos, o ritmo da leitura flui plenamente, permitindo que aproveitemos a obra por completo em algumas poucas horas – afinal, são pouco mais de cem páginas, dependendo da edição escolhida.

São todos esses aspectos que fazem de O Nevoeiro um fascinante conto de Stephen King, mostrando de maneira simples e concisa como o medo pode afetar as pessoas, transformando-as completamente. Trata-se de uma obra essencialmente atmosférica, que nos envolve da mesma maneira que a névoa toma conta dessa cidade e, mesmo que saibamos que o protagonista sobreviverá até o final do conto, não podemos deixar de torcer para que ele saia ileso de cada uma das perigosas situações apresentadas. Com isso em mente, fica fácil enxergar o porquê de O Nevoeiro ter permanecido atual até os dias de hoje.

O Nevoeiro (The Mist) — EUA, 1980
Autor: Stephen King
Editoral original: Viking Press, Signet Books
Data original de publicação: 1980
Editora no Brasil: Suma de Letras
Data de publicação no Brasil: 2 de setembro de 2013 (como parte do livro Tripulação de Esqueletos)
Páginas: 134

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