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Crítica | O Ódio Que Você Semeia

por Gabriel Carvalho
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“Violência, brutalidade. É a mesma história, apenas um nome diferente.”

As inúmeras desigualdades raciais inseridas no contexto norte-americano – quem são os mortos, quem são as vítimas, quem são as pessoas ensinadas a odiar, ensinadas a matar – compõem a essência discursiva de O Ódio Que Você Semeia, sobre o que o longa-metragem quer, em última instância, discorrer. Um personagem, com méritos e deméritos, é o centro. A marcante relevância social, sendo uma das produções dos últimos anos mais poderosas, discursivamente, dentro desse escopo próprio, um pouco colegial, remete, sem grandes dificuldades, ao excelente Dope – Um Deslize Perigoso, de 2015. Com essas pontuações em considerável enaltecimento, a narração em voice-over, comandada pela protagonista, Starr (Amandla Stenberg) – a mesma garotinha de Jogos Vorazes, para os curiosos – é um gancho interessante a fim de exposições necessárias, embora o uso de voice-overs constantes, iniciando e terminado a obra, seja uma escolha narrativa costumeiramente problemática, em decorrência da fomentação, em maior parte dos casos, de ideias simplesmente observativas – olhando, ao invés de vendo -, mas não absortivas, porque o cinema necessita de um encarregamento também visual. Quando vivemos em uma sociedade em que expomos problemas e as pessoas parecem não querer ouvir nada acerca deles – um momento do clímax surpreende com essa pontuação -, a mensagem precisa de um encaminhamento, no cinema, mais rebuscado, o que temos em O Ódio Que Você Semeia.

É só na favela que guarda-chuva é confundido com fuzil“, esteve presente na legenda de imagens veiculadas recentemente, com a morte de mais um brasileiro, negro. As histórias ajudam os espectadores em uma percepção da realidade através de situações, teoricamente, fictícias. A morte de um menino negro pelas mãos de policiais, premissa do longa-metragem, contudo, não é um acontecimento extraordinário. Um dos pontos mais equivocados da obra é justamente quando precisa de um flashback para reproduzir um distinto caso de violência, substantivo que assume diversas formas. Um dos passos enfocados nessa associação emocional, do sentimento pelo outro, não apenas do auto-reconhecimento imediato, envolvimento complicadíssimo, por se tratar de um contexto racial específico – coisa que obras de fantasia possuem mais capacidade para explorar -, é um reconhecimento através da empatia, compreendendo problemas e privilégios. As referências, um escape cômico e um paralelo interessante – Harry Potter ser sobre guerra entre gangues, por exemplo – moldam comparações úteis.  O Ódio Que Você Semeia é certeiro, abrangendo uma dimensão gigantesca de problemáticas, das maiores às menores, porém, criando, acima de tudo, um pensamento quase completo sobre do que se trata a desigualdade racial, por que ser negro ou ser branco não apenas comporta etnias completamente insignificantes, “cores que não são enxergadas”, mas atestado de óbito ou diploma de universidade.

O reconhecimento é necessário. A exposição de diferentes divergências entre os privilégios e a não-existência deles permeia o núcleo escolar, porque a protagonista, diferentemente das pessoas com quem cresceu, estuda em um outro colégio, em uma região mais rica, ou seja, em outras palavras, branca – o interesse dos seus pais em uma quebra de correntes. O conteúdo deste cerne é explorado com certa decência, contudo, nesse meio complexo, O Ódio Que Você Semeia encontra os seus maiores deméritos, por se tratar de uma produção com certas obviedades argumentativas, presentes em diálogos fracos e personagens rasos – o namorado possui um objetivo narrativo, porém, o interesse amoroso se perde com a trama desenrolada, retomando relevância abruptamente. As desigualdades permanecem sendo notadas. Sobre quem viu alguém morrer na frente e quem não viu. A jornada da protagonista, portanto, é uma jornada tendendo à redescoberta de suas próprias características, retornando a um mundo reacendido com a morte de seu amigo. Amandla Stenberg carrega essa trajetória com pesar e bravura adimensionais, também um carisma monstruoso. A coragem em pegar um alto falante e condenar a brutalidade policial. As consequências, surgindo dos “dois lados”, por ter tomado medidas como essa. Os protestos como maneira de resgatar uma memória e denunciar erros. A justiça é inerte ao mundo negro, provavelmente continuará sendo, no entanto, eles não estarão desistindo da luta.

As tensões inerentes a esse ambiente de hostilidade, da guerra entre um e outro, preto e branco, preto e preto, branco e branco, são apresentadas de maneiras diferenciadas, mas com um enfoque específico: uma jovem que precisa se expor para defender, no tribunal, seu amigo morto. Os antagonismos não são unilaterais, entretanto, encadeados. A primeira cena do longa-metragem, primeiramente, já constrói a dinâmica familiar, imergindo o espectador no amor inerente àquela instituição, tendo em vista justamente a insegurança presente nesse cenário de confrontos – como se comportar diante de policiais, um prenúncio às trevas. Maverick Carter (Russell Hornsby), pai de Starr, é presença crucial para uma credibilidade paralela à subversão do estereótipo – uma espécie de família do sonho americano invertida. Quando George Tillman Jr. decide, após a cena envolvendo a morte do jovem garoto, amigo da protagonista, inserir outros segmentos com a mesma premissa dos policiais brancos abordando pessoas negras, o ideal de horror não é subtraído, mas renovado e repetido como realmente acontece na sociedade. O clímax, em última instância, tem a capacidade de retirar o espectador completamente do filme – um ponto positivo, surpreendentemente -, para que viremos o rosto em desespero, sentindo o que esteve e agora está em jogo – o ódio que você semeia para as crianças ferra todo mundo. A câmera lenta entende essa subversão da imersão, nos confrontando a repensar sobre o que se trata a vida bandida.

A resolução posterior, demasiadamente antagônica, é injusta com a intenção crítica do longa-metragem, distorcendo-a, porém, sem destruí-la completamente. Quando a obra é questionada, em uma conversa extremamente importante da protagonista com um personagem em especial, um homem negro que também é policial – questão reiterada algumas vezes -, a dissertação é subvertida, mostrando uma contra-argumentação interessante. “Mãos para o alto. Não atire.” O assassino do garoto, complicando a temática e removendo arquétipos sobre o que o racismo apenas é, não atirou no menino porque ele era negro – um ódio racial -, mas atirou por inúmeras outras razões, embasadas sobre o fato do garoto ser negro – o medo, portanto, ainda reprovável. Caso fosse um jovem branco, em um bairro nobre, a condução da ação seria completamente diferente. Os riscos em perguntar depois, aparentemente, são maiores nesses casos e isso é um problema evidente, precisa ser consertado e precisa ser entendido. Não é assim, porque é assim. As coisas como são matam jovem negros – seja confundindo guarda-chuva com fuzil, confundindo saco de pipoca com droga, confundindo escova de cabelo com pistola. O Ódio Que Você Semeia compreende perfeitamente bem os danos causados na população negra. Atire primeiro e pergunte depois? Como conduzir uma investigação criminosa no cemitério, interrogando mais um jovem negro a sete palmos do chão? As mães choram e o ódio é semeado.

  • Crítica originalmente publicada em 08 de novembro de 2018 como parte da cobertura do Festival do Rio.

O Ódio Que Você Semeia (The Hate U Give) – EUA, 2018
Direção: George Tillman, Jr.
Roteiro: Audrey Wells, Angie Thomas
Elenco: Amandla Stenberg, Lamar Johnson, Regina Hall, Russell Hornsby, Anthony Mackie, Common, TJ Wright, Issa Rae, Algee Smith, K.J. Apa, Sabrina Carpenter, Dominique Fishback, Megan Lawless, Tony Vaughn, Susan Santiago, Rayven Symone Ferrell, Drew Starkey
Duração: 133 min.

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