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Crítica | O Olho do Diabo (1960)

por Luiz Santiago
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Em 1960 três filmes de Ingmar Bergman foram lançados. O primeiro, uma adaptação para a TV da peça Tempestade (1907) de Strindberg. O segundo, A Fonte da Donzela, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e indicado na categoria de Melhor Figurino (em produção P&B). E o terceiro, O Olho do Diabo, uma comédia baseada em uma peça radiofônica antiga de Oluf Bang, um autor dinamarquês. Bergman pegou a premissa dessa obra — O Retorno de Don Juan — e escreveu uma história à sua própria maneira, antes mesmo de iniciar as filmagens de A Fonte da Donzela. Quando voltou ao texto, ele não gostou de nada e jogou fora todo o primeiro tratamento, escrevendo-o novamente, de ponta a ponta. O resultado, o diretor certa vez definiu em entrevista, como “uma peça de teatro mal feita“.

O fato é que Bergman jamais quis fazer O Olho do Diabo. Sua história com este enredo começou quando ele, em reunião com o CEO da Svensk Filmindustri, Carl Anders Dymling, propôs a filmagem da folclórica balada medieval As Meninas de Töre em Vänge. Dymling negou imediatamente o pedido e solicitou que Bergman dirigisse uma comédia, se possível a peça (ou uma versão dela) de Oluf Bang. Bergman recusou. O impasse foi resolvido com um acordo proposto pelo cineasta: embora detestasse a ideia, ele faria a comédia que Dymling tanto queria se o empresário o permitisse adaptar As Meninas de Töre em Vänge. O acordo foi fechado e assim nasceram A Fonte da Donzela e o Olho do Diabo.

Na versão de Bergman, Don Juan (Jarl Kulle) vem à Terra por ordens de Satã (Stig Järrel). Seguindo o provérbio irlandês que abre o filme, “A castidade de uma mulher é um terçol no olho do Diabo“, o texto coloca o mandatário do Inferno incomodado com um terçol que ele logo descobre ser resultado de uma virgem de 20 anos que está para casar-se. Segundo os valores infernais, seria desastroso se isso acontecesse. Era preciso que alguém fizesse alguma coisa. Então a “arma secreta” do Diabo, acompanhada do servo Pablo (Sture Lagerwall) e de um guardião (Ragnar Arvedson) que se transforma em um gato preto, é enviada para fazer a jovem cair em tentação e, com isso, “manter o equilíbrio” das coisas malignas na Terra.

Em nada O Olho do Diabo nega suas origens teatrais, tanto pelo material-fonte, quanto pelo fato de Bergman ser também um dramaturgo, tendo escrito e dirigido peças durante anos. Muitos de seus filmes possuem elementos teatrais e este sempre foi um recurso formal muito caro do diretor. Aqui, porém, a dinâmica não é apenas sugerida ou colocada em pequenas cenas. O filme é de fato concebido como uma peça de teatro, tendo O Ator (Gunnar Björnstrand) narrando algumas cenas, marcando o início e o fim dos atos e comentando alguns aspectos do enredo com a plateia, numa piscadela metalinguística igualmente cara a Bergman e que, mais uma vez, é muito bem utilizada em um filme seu.

A proposta de os enviados infernais atormentarem e tentarem a família de um pastor funciona bem. A presença teatral está bem colocada, o elenco afinado e a belíssima fotografia saturada de Gunnar Fischer (em seu último trabalho com Bergman) faz uma boa transição entre o Inferno e a Terra, além de criar perfeitamente bem as atmosferas de cada cômodo da casa, onde conversas e desejos serão realizados, negados ou reprimidos. O problema nesse desenvolvimento está na exigência que o roteiro faz para o público aceitar uma série de atitudes por parte dos moradores da casa. É sugerido que não existe nenhuma “mágica” envolvida, até porque os dotes de Don Juan precisavam ser testados. Desse modo, a aceitação e posição da esposa e do pastor diante dos acontecimentos no segundo e terceiro atos são coisas bem difíceis de engolir, apesar de trazerem, isoladamente, ótimas reflexões sobre o casamento, a honestidade, a convivência e o perdão. Embora as cenas no Inferno sejam as que melhor exponham pensamentos a respeito dos “valores da sociedade” (as falas irônicas do diabo sobre matrimônio são maravilhosas), as cenas na casa do pastor dão uma perspectiva mais carinhosa a respeito. E é quando as coisas começam a dar errado para Don Juan, que não esperava encontrar o amor.

Cínico, o roteiro de O Olho do Diabo não deixa ninguém vencer por completo, embora todos pareçam, de alguma forma, satisfeitos com o final. Entre uma missão cumprida, um orgulho mantido e a maldade do Diabo em ação, temos aqui um material leve e textualmente limitado de Bergman, mas ainda assim, repleto de excelentes e engraçadas alfinetadas no comportamento das pessoas (especialmente nas que se colocam como “livres de pecado”) e nas instituições sociais. Uma comédia incomum, que ri da inocência e que se põe melancólica ao entender o que o amor pode fazer com uma pessoa, mesmo alguém que a vida e a eternidade inteira se blindou contra os sentimentos, achando que o desejo e as fervorosas paixões lhe bastavam. Até que descobre que não é bem assim. Em O Olho do Diabo, um terçol é curado, mas um grande abismo nasce no coração.

O Olho do Diabo (Djävulens öga) — Suécia, 1960
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Jarl Kulle, Bibi Andersson, Stig Järrel, Nils Poppe, Gertrud Fridh, Sture Lagerwall, Georg Funkquist, Gunnar Sjöberg, Torsten Winge, Axel Düberg, Kristina Adolphson, Allan Edwall, Ragnar Arvedson, Gunnar Björnstrand
Duração: 87 min.

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