Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | O Ovo da Serpente

Crítica | O Ovo da Serpente

por Luiz Santiago
4,8K views

[…] qualquer um que fizer o mínimo esforço poderá ver o que nos espera no futuro. É como um ovo de serpete. Através das membranas finas pode-se distinguir o réptil já perfeitamente formado.

Hans Vergerus

Produzido pelo badalado Dino De Larentiis, com colaboração germano-americana, O Ovo da Serpente (1977), de Ingmar Bergman, é possivelmente a melhor reprodução cinematográfica sobre República de Weimar, considerando, além da recriação do período, as questões sociais, políticas, jurídicas, culturais, antropológicas e ideológicas; e do surgimento do nazismo na Alemanha, embora ainda valha a pena lembrar que Rainer Werner Fassbinder igualmente nos legou uma gloriosa contribuição sobre o tema, em sua série para a TV, Berlin Alexanderplatz (1980), onde percorre o período com profundidade amarga através de suas personagens não menos atormentadas que o mundo onde viviam.

Bergman escreveu o roteiro sob meticulosa pesquisa histórica e nele retratou com muita fidelidade os primeiros passos de uma sociedade que, já dividida em organização física e teórica, desembocaria nas mãos do nacional-socialismo a partir de 1933. Façamos, antes, uma breve passagem pelos eventos que construíram esse tempo histórico.

Com a queda da monarquia na Alemanha após a 1ª Guerra Mundial, a cidade de Weimar (onde morreu Goethe) foi escolhida como sede do novo governo, uma República liberal que precisava guiar o país destruído pela guerra para um tempo de reconstrução que parecia não ter nenhuma possibilidade de aparecer em curto ou médio prazo. Os primeiros anos da República de Weimar são de profunda crise interna, da qual destacamos alguns eventos:

  1. Fracasso industrial e monumental inflação;
  2. Impunidade dos assassinos políticos, que agiam em larga escala – segundo o historiador alemão Peter Gay, em seu livro A Cultura de Weimar, o fato de o novo governo não empreender uma reforma judiciária foi um dos seus grandes erros;
  3. Diversas tentativas de derrubar o governo;
  4. A “crise moral” causada pela assinatura do Tratado de Versalhes;
  5. A ocupação de Ruhr pela França;
  6. O crescimento desenfreado do fanatismo político, do anti-semitismo e da xenofobia.

Nesse caos social, a moderna centelha cultural condenada pela monarquia ganhou espaço livre para manifestar-se, e é então que temos a Bauhaus, A Ópera dos Três VinténsA Montanha MágicaO Gabinete do Dr. CaligariDr. MabuseNosferatuMetropolisO Anjo Azul, etc. O expressionismo nas artes deste período representava artisticamente a insegurança e as diversas crises do país, sendo o medo o principal fantasma, alimentado diariamente por propaganda xenofóbica/racista, inicialmente ilegal (mas a crise jurídica parecia dar um aval mudo a ela, pois não haviam reais punições); palavras de ordem por um militarismo salvador, como “único caminho” de redimir os “elos desregrados” do governo e da população; e forte sentimento de culpabilidade dos males do país a poucos ou um único grupo de pessoas.

Bergman constrói com impecável riqueza de detalhes o mundo sangrento, paranoico e instável que era a Alemanha de 1923, ano em que se passa o seu filme, no período entre 3 e 11 de Novembro, semana do Putsch de Munique. O Ovo da Serpente é a história de Abel Rosenberg (David Carradine, em atuação magnífica), um trapezista judeu que vê o seu mundo desmoronar a partir do suicídio de seu irmão. Sua vida então se resume a lutar pela sobrevivência ao lado da cunhada Manuella (Liv Ullman, como sempre, fenomenal), uma cantora de cabaré. Bergman insere em suas características autorais o mundo que se dispõe representar e com a inigualável fotografia de Sven Nykvist, percorre becos e casas com a aura do recrudescimento, captada junto a tipos sociais muito representativos. Um desses mundos é o do espetáculo, e assistimos às apresentações do cabaré (com Liv Ullman cantando em alemão) em de um bar-jazz em Berlim, com músicos alemães fazendo blackface.

O anti-semitismo é visto desde a segunda cena do filme, quando o delegado de polícia pergunta a Abel se ele é judeu e, mais adiante, o prende como suspeito de uma série de “assassinatos brutais e misteriosos”. Em outra cena, um grupo de jovens alemães obrigam dois judeus a lavarem uma calçada com escovas, atitude ignorada pelo policial que passa e vê a cena, mas não intervém. Bergman mostra com muita crueza como essas ideias de ódio e tratamento vil a um grupo de pessoas se espalhou pela cidade, assim como o discurso de justificativa para esse ódio tão grande quanto o destinado aos “bolchevistas”. Através dos jornais e das batidas policiais em “estabelecimentos judeus” (o caso do cabaré onde Manuella trabalha é um exemplo), é possível identificar como o discurso anti-semita tinha força e, já nos anos 1920, causava destruição, mesmo em uma Alemanha cuja forma de governo era a República.

O desemprego e a fome estão em toda parte na Berlim desses “loucos anos”. A cidade parece uma carcaça por dentro, encoberta pela arquitetura. Em uma cena chocante, vemos pessoas cortarem a carne de um cavalo morto para alimentar-se. Também acompanhamos a constante desvalorização do marco, até o ponto em que o valor impresso da moeda não importava mais e as vendas eram feitas pelo peso que se tinha em dinheiro. A luta pela sobrevivência é a ordem a ser cumprida e o medo acompanha as ações vacilantes dessa sociedade que se decompõe. A libido se ajusta à histeria e ao desalento.

O ponto-chave e revelador da obra é quando a história das experiências com seres humanos é esclarecida, em uma das mais supremas cenas do cinema, onde a maestria do corte, do enquadramento e da direção podem ser vistas em grande estilo. Entre pequenos curtas-metragens feitos durante as “observações”, os closes descritivos em um silencioso David Carradine falam mais do que páginas e páginas de roteiro. O profético discurso final do cientista dá conta de um caminho perigoso pelo qual seguia a Alemanha, e ressalta um “caminho de revolução” que viria em dez anos.

O desfecho do filme é a triste revelação de um indivíduo “contaminado” pela virulenta metrópole, que tem a oportunidade de sair daquele espaço mas não consegue, e se perde entre pedestres e ruas molhadas pela constante chuva… para nunca mais ser visto. O realismo com que Bergman nos apresenta a Berlim de 1923 é espantoso. Os figurinos de Charlotte Fleming também merecem destaque, pela adequação dramática e imagética perfeitas. Em O Ovo da Serpente, Bergman realiza uma obra dotada de forte senso crítico-social e de uma exposição memorável da História. Com a profunda força da imagem, o diretor consegue mostrar uma sociedade que vivia sob o medo e ainda denuncia os motivos pelos quais o futuro tenebroso falaria por si. Até mesmo a posição de alemães antinazistas é abordada, e a descrença em Hitler, por ocasião do Putsch de Munique, é verbalizada em cena simbólica.

O Ovo da Serpente é um grande exercício cinematográfico, com atuações irreparáveis – inclusive do elenco de apoio – e com a louvável direção de Bergman, que usou de anos de experiências anteriores, em roteiros que investigavam a alma, humana para transformar em celuloide o sentimento de uma época, fazendo-o de forma única e, por incrível que pareça, ainda presente em sociedades contemporâneas, em diversos estágios de desenvolvimento. Um filme analítico que nos mostra que não se mata uma ideia, inclusive aquelas encubadas por uma sociedade polarizada, marcada pelo medo e acreditando que tudo o que lhe torna problemática tem raiz naquele que é diferente e na liberdade individual alheia, cabendo à salvadora mão forte do Exército, do Ditador, do Grande Político Centralizador, do Culto ao Líder, o poder de segregar, proibir ou matar os “desregrados” para, então, segundo esses indivíduos, salvarem o país. Um eterno e infame ovo da serpente.

O Ovo da Serpente (Das Schlangenei) –  EUA/Alemanha Ocidental, 1977
Direção:
 Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco:Liv Ullmann, David Carradine, Gert Fröbe, Heinz Bennent, Toni Berger, Christian Berkel, Edith Heerdegen, Kai Fischer, Paula Braend, Paul Bürks, Gaby Dohm, Emil Feist, Georg Hartmann, Edith Heerdegen, Günter Meisner, Glynn Turman, James Whitmore
Duração: 120min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais