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Crítica | O Pagador de Promessas (1962)

por Luiz Santiago
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Adaptação para o cinema de uma peça de Dias Gomes escrita em 1960 (e encenada com tremendo sucesso, saindo em turnê para todo o país), O Pagador de Promessas tornou-se o maior filme de Anselmo Duarte e um dos maiores representantes da nossa cinematografia, sendo também o primeiro longa brasileiro a receber uma indicação ao Oscar e a levar para casa a Palma de Ouro. Mas o valor do filme vai além das grandes premiações. Sua temática de forte crítica ao conservadorismo dentro da igreja católica (um conservadorismo ligado mesmo à concepção de fé, de adoração, congregação; algo que não se restringe apenas ao catolicismo, mas a quase todos os braços do Cristianismo) e deixas para a discussão de fé, religião e religiosidade foram retratados com tamanha força que tornam a obra uma peça única e ainda muito atual.

Zé (interpretado com imensa ternura, demonstração de devoção e excelentes momentos de ira por Leonardo Villar) é um pequeno fazendeiro do interior da Bahia que tem um melhor amigo chamado Nicolau. Quando o amigo sofre um acidente e parece que não irá se recuperar, Zé vai até o “lugar sagrado” mais próximo de sua casa, um terreiro de candomblé, onde faz uma promessa para Santa Bárbara (ou Iansã) de que levaria uma cruz até a igreja da santa, em seu dia de festa litúrgica, 4 de dezembro. Ocorre que ao cumprir a promessa, chegando à escadaria da igreja e contando ao padre Olavo onde a promessa foi feita — e que Nicolau é um burro –, as coisas começam a mudar de figura. Acusado de “ter parte com o diabo” e de “mexer com macumba, feitiçaria” Zé é impedido de entrar na igreja com a cruz. Um novo martírio e jogo de interesses se inicia.

Dionísio Azevedo faz uma grande interpretação como padre Olavo, assumindo a postura de muitos religiosos que, cegos pela literalidade ou por conjuntos doutrinários, acreditam fazer “a coisa certa” ao condenar ou impedir que indivíduos se cheguem a Deus. Mesmo que esteja destruindo a vida do outro tais religiosos afirmarão que estão “amparados pela Palavra” e que estão fazendo aquilo para “impedir o outro de pecar” ou “fazendo o bem pela sua alma“, como se a salvação não fosse algo individual e como se um dos princípios basilares do novo pacto de Deus com a humanidade não fosse o livre-arbítrio. Ao explorar o sincretismo religioso no filme, Duarte e Gomes cutucam organização do clero, a recusa de enxergar a fé como um encontro particular com o divino e, pior de tudo, o ato de atribuir ao outro ações e palavras que este não fez ou disse, mais um desvio moral do que uma caraterística religiosa mesmo.

Exceto pela montagem do meio para o final do filme, que deixa sobrar planos de contexto com o pessoal da capoeira, as mulheres do candomblé e a chegada do povo à escadaria da igreja, o ritmo do filme é bem dosado, começando com a caminhada de Zé e sua esposa (Glória Menezes, que só começa a entregar uma boa performance após a personagem ser atormentada pela culpa, depois da noite com Bonitão, interpretado por Geraldo Del Rey) e segue com diversos atos do pagador de promessas diante da igreja e as pessoas que se aproveitam da situação para lucrar (o comerciante), para tentar vender arte (o poeta), para fazer protesto social ou campanha política. Em alguns aspectos o roteiro até dá mostras de maior teatralidade na conclusão de um bloco para a chegada de outro, mas o diretor consegue um bom resultado geral com isso, embora essas passagens não tenham um grande peso quando olhamos para o filme como um todo.

Parte de um momento de transformação do nosso cinema, O Pagador de Promessas mostra a cara do Brasil dentro de uma esfera que deveria unir as pessoas pelo bem. Em um país de formação étnica com três basilares caminhos de religião (o animismo, totemismo e xamanismo dos indígenas; as religiões de matriz africanas dos negros trazidos para cá como escravos; e o cristianismo português), a fusão de datas, crenças e valores de fé criam uma teia de valores difíceis de se separar, em especial para quem, como o protagonista, tem um olhar unicamente ligado à fé e não à política das igrejas ou ao laço pétreo e “sempre certo” das doutrinas. Mesmo sendo uma obra de 1962, há nuances de comportamento social, do tratamento dado às mulheres e de embates religiosos que persistem até os nossos dias, inclusive no aspecto trágico, o que faz de O Pagador de Promessas um clássico doloroso, de cantigas sacras, procissões, imprensa sensacionalista, músicas e batuques de terreiros, berimbau e lamentos pessoais. Em muitos aspectos, o Brasil continua o mesmo. E a fé da maioria das pessoas ainda não chegou ao ponto de fazer com que se unam.

O Pagador de Promessas (Brasil, 1962)
Direção: Anselmo Duarte
Roteiro: Anselmo Duarte, Dias Gomes (baseado em uma peça de Dias Gomes)
Elenco: Leonardo Villar, Glória Menezes, Dionísio Azevedo, Geraldo Del Rey, Roberto Ferreira, Norma Bengell, Othon Bastos, Antonio Pitanga, Gilberto Marques, Milton Gaucho
Duração: 98 min.

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