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Crítica | O Rito (1969)

por Luiz Santiago
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O primeiro tratamento de roteiro para O Rito (telefilme originalmente exibido em março de 1969 e posteriormente lançado nos cinemas em diversos países) foi escrito por Ingmar Bergman antes das filmagens de Vergonha (1968). Bastante ocupado com a produção e relativamente enjoado pelo longo processo de filmagens e cobranças sobre o produto final, Bergman voltou para O Rito com o pensamento de que, para variar, “faria as coisas mais simples” (até onde a “simplicidade” é possível em um filme de Bergman). Ele se juntou com quatro grandes amigos, assumiu que o novo projeto seria um diálogo da TV com o teatro e, em nove dias e com um orçamento muito curto, realizou o filme.

Uma trupe de artistas chega a um país não nomeado no filme. O espectador não vê essa chegada e nem a apresentação experimental da peça que posteriormente chamariam de O Rito. O que vemos é o encontro inicial de Thea (Ingrid Thulin), Sebastian (Anders Ek) e Hans (Gunnar Björnstrand) com o juiz Abrahamson (Erik Hell). A tal performance experimental que não vemos gerou certo furor pelo conteúdo supostamente pornográfico e colocou os artistas na mira das autoridades, que cobrou deles algumas multas e os convocou para prestarem depoimentos. Dividido em atos, o filme se alterna em cenas na sala de interrogatórios, em um bar, em um quarto de hotel e camarim. Cada ato corresponde a um descortinar íntimo para os artistas — tanto em suas questões pessoais quanto interpessoais — e a alguns passos no processo de conhecimento do juiz, sempre disposto a humilhar os artistas, a despeito de sua postura dominadora, abusadora de poder e, em um ato específico, também criminosa.

Cada um representa um aspecto constante do comportamento humano (destaque ainda mais intenso quando notamos que os atores em cena são excelentes), algo que o diretor gostava de fazer em seus grupos teatrais, como visto em Noites de Circo e O Rosto. Aqui, porém, o estado de espírito, a audácia e mesmo a relação artística dos personagens é outra. Primeiro, porque estamos falando de um trio que alcançou o sucesso, com alguns milhões de arrecadação por ano. Eles possuem agente, advogado e contador, ou seja, é uma outra categoria de artistas, um tratamento que talvez reflita a situação financeira e de prestígio do próprio diretor. Depois, porque o que está em questão é uma cobrança moral feita por um aparelho de Estado imoral, para artistas com moral duvidosa, maleável e não muito fácil de ler.

Como disse antes, temos em cada um deles um aspecto diferente da personalidade humana. Separados, suas forças e fraquezas se destacam e fica muito fácil para o juiz, no papel de “controlador de aspectos individuais“, domá-los. Então criamos uma percepção curiosa em relação ao personagem de Erik Hell. Em dado momento, o roteiro tende a nos fazer sentir pena dele, como um homem inseguro, com problemas de saúde, ainda em luto pela morte do pai, viciado em trabalho, solitário e com uma culpa cristã que nem ele mesmo consegue entender. No ato final, quando os artistas se juntam, fazendo com que todos os aspectos possíveis de uma personalidade estejam fortes e prontos para “atacar” é que as fraquezas do juiz também se juntam e perdem a batalha. Ele não consegue lidar com tanta informação, tantos simbolismos místicos (o elemento ritualístico é ligado a Dionísio) e seu coração o trai. A “vitória” do erotismo caótico sobre o representante do Estado, contudo, é amarga, quase um anti-clímax. A trilha absolutamente simples (foco em ritmo) e a direção de planos mais fechados destacam o ambiente claustrofóbico e fazem o serviço final demonstrando que todos, ali, independente do resultado, estavam condenados.

Medo, ansiedade, fúria e agressão são conteúdos que a peça suscita, explorando algo que audiência e artistas compartilham em distintos momentos. Essa relação está pautada aqui e ali por situações que qualquer criador, após certa relevância no mercado, já viveu, como lutar contra a mão da censura, a negativização do público, o choque com valores culturais/sociais e a resposta dos acusados. Neste ponto é que o cenário visualmente opressivo fotografado, com pouca luz por Sven Nykvist, nos dá a cartada final. Não importa quais são as brigas internas ou externas que artista, Estado e público travam. Alguma resposta será dada e alguma movimentação será feita pelos dois lados. E é aí que todos perceberão que a mesma arte que cria, também é a arte que pode destruir.

O Rito (Riten) — Suécia, 1969
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Ingrid Thulin, Anders Ek, Gunnar Björnstrand, Erik Hell, Ingmar Bergman
Duração: 72 min.

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