Home FilmesCríticas Crítica | O Sacrifício do Cervo Sagrado

Crítica | O Sacrifício do Cervo Sagrado

por Ritter Fan
3,9K views

Mãe! e O Sacrifício do Cervo Sagrado foram lançados lá fora quase simultaneamente em 2017 e, curiosamente, os dois filmes, de diretores bem experimentais, mas estilisticamente diferentes, adaptam mitologias. Claro que a obra de Darren Aronofsky não só é muito maior em escopo, como lida com talvez os livros mitológicos mais conhecidos de todos: os Velho e Novo Testamentos. No caso do mais recente filme do instigante diretor grego Yorgos Lanthimos, a fonte de inspiração é Ifigênia em Áulide, a última peça teatral que se tem conhecimento do grande Eurípides, seu conterrâneo.

Lanthimos vem, desde 2009, acertando constantemente em suas abordagens bizarras sobre a condição humana. Dente Canino se fia na estranheza para abordar mitos e mentiras, Alpes dá uma de Rashomon em meio a um conto minimalista e seu mais recente – e muito comentado – filme, O Lagosta, primeiro em língua inglesa, lida com um futuro distópico em que as regras impostas pela sociedade simplesmente precisam ser obedecidas. O roteiro de Cervo Sagrado, co-escrito pelo diretor e Efthymis Filippou, que trabalham juntos desde Dente Canino, continua a veia desafiadora que vem marcando suas obras, ou seja, apresentando sua crítica social com um verniz surreal que comumente afasta ao mesmo tempo que intriga os espectadores.

Aliás, é bastante comum que a filmografia de Lanthimos seja rechaçada por parte do público que apenas vê esse verniz e logo conclui estar diante de um filme hermético “de arte” que transborda pretensão. Ainda que essa definição preconceituosa e reducionista não esteja de todo incorreta, o diretor, felizmente, não se dobra aos anseios mais hollywoodianos da arte de fazer filmes e continua em sua trilha de provocações, sem se esquivar de apresentar seu material de forma crua, doa a quem doer. Aqui, isso fica evidente desde os segundos iniciais, em que a câmera nos oferece um close-up de um coração pulsando em meio a uma cirurgia, o que já estabelece o tom e o ritmo da fita.

Em Ifigênia em Áulide, o rei Agamenon, irmão de Menelau e conhecido por ser o líder militar que leva os estados gregos à mítica Guerra de Troia, decide sacrificar sua filha para apaziguar a deusa Ártemis e permitir que suas tropas zarpem para trazer Helena de volta das mãos de Páris. A culpa e a expiação da culpa por meio de um sacrifício tão grande são os pontos de conexão da peça – galgada na mitologia grega – com o filme de Lanthimos, com seu título já deixando bem claro esse relacionamento. Nele, vemos Steven Murphy (Colin Farrell repetindo sua parceria com o diretor), um cirurgião cardiovascular, em uma estranha amizade com Martin (Barry Keoghan), um jovem de 16 anos, que ele esconde de sua esposa Anna (Nicole Kidman) e de seus filhos Kim (Raffey Cassidy) e Bob (Sunny Suljic). O que parece caminhar pelo óbvio, rapidamente muda e vemos Martin cada vez mais próximo da família Murphy, até que descobrimos que o que ele quer é vingança, o famoso “dente por dente”.

Não achem que dei algum spoiler ao descrever a trama da maneira que descrevi, pois essa é a premissa básica da narrativa. O como e o porquê são explicados ao longo da projeção e não lidarei com eles aqui, ainda que não houvesse prejuízo para a apreciação da obra se assim eu o fizesse. Basta deixar claro que a obra, de alguma forma, muito claramente tangenciará o dilema de Agamenon que, claro, aqui é encarnado por Steven.

O que realmente chama a atenção do espectador é o vazio das tomadas na cidade americana sem nome onde o filme se passa que é refletido no vazio das vidas de Steven e sua família. Quase não há pessoas além daqueles especificamente focados pelas lentes de Lanthimos e especialmente Farrell e Kidman nos brindam com atuações que certamente serão consideradas estranhas, frias e monocórdias a partir de diálogos deslocados e sem sentido. No entanto, quando olhamos para  o que há abaixo do tal verniz surreal que mencionei, perceberemos que é exatamente isso que Lanthimos quer de seus atores: a paralisia física que toma alguns personagens é refletida na paralisia mental (chamemos assim) de Steven particularmente, que se mantém apático e irritantemente parvo até os minutos finais do filme. Os diálogos, que parecem sair do nada, como o que abre o filme – depois da cirurgia de peito aberto – sobre relógios são desconcertantes por serem confrontativos, mas ao mesmo tempo ganham uma lógica toda especial dentro da proposta do cineasta. Não, nem tudo pode ser explicado ou encaixado, mas o importante são os sentimentos e pensamentos que cada palavra, cada frase instiga no espectador e o que as frases em conjunto significam.

Aliás, tais sentimentos e pensamentos – todos desconfortáveis, que fique claro – são salientados e amplificados por uma trilha sonora intrusiva e assincrônica que me fez lembrar do angustiante e perturbador trabalho de Mica Levi em Jackie. Mas, diferente do filme sobre a mais famosa Primeira Dama, aqui Lanthimos é econômico no uso de música que entra de supetão em sequências-chave para realmente tirar o espectador da famosa zona de conforto. Se ele provoca com palavras, ele não deixa de fazer o mesmo com a música.

Em meio às atuações propositalmente distantes do casal principal, há espaço para o jovem Keoghan brihar em Cervo Sagrado. De seu próprio jeito tímido e calado, seu Martin trafega entre o filho educado que todo mundo gostaria de ter e um sociopata assustador que ninguém gostaria de sequer passar perto. E Keoghan transita entre um e outro com maestria, transformando-se facilmente diante das câmeras, mas sem exageros, sem histrionismo e sem obviedades. Curiosamente, é Martin o personagem com sentimentos mais à flor da pele, mostrando-se carente, possessivo e protetor, com uma relação umbilical com sua complicada mãe (Alicia Silverstone, irreconhecível, em uma ponta).

Lanthimos cria um universo asséptico e oco que dá voz aos sentimentos emudecidos que tenta transmitir, de forma que os sentimentos mais importantes aqui – culpa e vingança – ganhem foco natural. Seu uso de um plongée extremo na escadaria do hospital onde Steven trabalha, depois de um plano sequência de câmera parada, é particularmente belíssimo, combinando poeticamente com o vazio existencial e a apatia do personagem de Farrell. Encarnando Kubrick, o diretor usa e abusa de tomadas simétricas e de tracking shots que, apesar de funcionarem como o que os americanos chamariam de eye candy, por muitas vezes não parecem ter funções maiores do que os enfeites que são, o que apenas contribui para distrair o espectador e dar uma duração mais longa do que a fita precisava ter.

Além disso, por vezes o roteiro descamba para textos expositivos demais que quebram a sutileza da narrativa apresentada. Momentos particularmente desnecessários são aqueles que escancaram a questão da culpabilidade, tornando óbvio aquilo que já havia ficado marcado nas entrelinhas. São, talvez, os únicos momentos em que Lanthimos se curva à “necessidade de explicações” que perpassa produções que pretendem extrapolar seu nicho de mercado, algo que também marca brevemente O Lagosta. É compreensível e não desabona a experiência, mas é um hábito que o diretor faria bem em suprimir em obras futuras para abraçar de vez o lado esquisito e bizarro, como em Dente Canino.

Mãe! foi recebido de maneira divisiva pelo público e não vejo como O Sacrifício do Cervo Sagrado ser diferente. É um filme que incomoda, afasta, coloca o dedo na ferida e escancara as fraquezas humanas. Não é agradável de ver e Lanthimos não tenta dourar a pílula. Mas o espectador que souber ver logo abaixo da leve camada de “verniz da pretensão hermética” potencialmente terá uma ótima experiência. Mas, gostando ou não, uma coisa é absolutamente certa: ninguém sairá completamente indiferente da sessão de cinema.

O Sacrifício do Cervo Sagrado (The Killing of a Sacred Deer, Reino Unido/Irlanda/EUA – 2017)
Direção: Yorgos Lanthimos
Roteiro: Yorgos Lanthimos, Efthymis Filippou
Elenco: Colin Farrell, Nicole Kidman, Barry Keoghan, Raffey Cassidy, Sunny Suljic, Alicia Silverstone, Bill Camp, Herb Caillouet, Barry G. Bernson
Duração: 121 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais