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Crítica | O Sol na Cabeça, de Geovani Martins

por Luiz Santiago
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Após o lançamento de O Sol na Cabeça, no início de 2018, Geovani Martins não demorou para receber a tag de “fenômeno literário brasileiro”. Neste seu primeiro livro, o escritor entrega um ótimo conjunto de histórias e não é nada espantoso que tenha conseguido agradar a públicos distintos e que já tenha os direitos de sua obra vendidos para o cinema e para oito países. Dos 13 contos que formam o livro, 10 são de “bom” para cima, e mesmo os três contos ruins — falaremos disso mais adiante — trazem mensagens interessantes em diversos contextos, seja na forma como os personagens se expressam, como dialogam com o público, o tipo de problema social que carregam e como se inserem e se afastam (ou são afastados) desse Universo.

Escritor carioca, nascido em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro, Geovani Martins começou a escrever cedo. Falar sobre suas mudanças, e expor sua forma de enxergar os “diferentes mundos” onde que vivia era uma inspiração constante, no cotidiano, na rua, na TV, na memória, na pele. Em 2013, participou de uma oficina na Festa Literária das Periferias (Flup) e, em 2015, ao lado de alguns colegas, participou da programação paralela na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), evento que serviu para que ele tomasse a decisão de que ia mergulhar na escrita, passando por mais um período de aperto financeiro, mudança de casa e incertezas que, em médio prazo, seriam recompensadas.

A primeira coisa que chama a atenção aqui é que a favela de onde Martins veio, a favela da qual ele fala e sente orgulho através de sua escrita, não é a mesma favela (nesse caso, de São Paulo) descrita por Carolina de Jesus em Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada. É evidente que algumas feridas ainda seguem abertas e até geraram outras, possivelmente mais feias (e bem disfarçadas), mas não é a mesma. E não falamos apenas do avanço da tecnologia e acessibilidade relativamente maior para moradores. Falamos de elementos que permitiram a esses lugares uma cena cultural própria e interligada a outras cenas, normalmente elitizadas, onde favelados não chegariam para ouvir e muito menos expor seus trabalhos. A vida miserável de alguns, a violência, a escassez de trabalho, a truculência da polícia e dos bandidos, a venda de drogas, a sujeira, o descaso do Estado e a falta de perspectiva da maior parte dos moradores ainda estão lá. Mas nesta “nova favela”, há uma luz. E este é um dos motivos que fazem O Sol na Cabeça brilhar com muito vigor.

Rolézim é o primeiro conto do livro. Cru, direto. Demora para o leitor pegar o ritmo — e ainda sustento que esta não foi a melhor escolha para iniciar o livro (diferente do ótimo Travessia, para terminar) — mas é um conto que fisga desde o primeiro parágrafo: “Acordei tava ligado o maçarico! Sem neurose, não era nem nove da manhã e a minha caxanga parecia que tava derretendo. Não dava nem mais pra ver as infiltração na sala, tava tudo seco. Só ficou as mancha: a santa, a pistola e o dinossauro.“. A linguagem coloquial é sempre um bom elemento de aproximação com o leitor (a não ser que você seja o tipo de indivíduo para quem Manuel Bandeira escreveu Os Sapos), mas em Rolézim tudo é grande demais para ser digerido em pouco tempo. Na primeira, segunda página. A dor do soco literário, porém, passa e chegamos ao fim do conto com um sorriso de cumplicidade e um pouco de tontura. E daí para frente, só teremos três tropeços: Espiral (que tem uma boa mensagem, mas é tão truncado que nem parece ser lavra do mesmo autor), O Cego (que mostra uma curiosa relação de aproximação e trabalho, mas é o único conto que nada, nada e morre na praia), e A História do Periquito e do Macaco (que tem bons momentos, mas apresenta divagações demais, atrapalhando a apreciação do leitor, engatando mesmo só no final).

O tempo inteiro O Sol na Cabeça nos lembra que em uma grande cidade, todo o clichê de novela, de ditado “pega ladrão“, de dilemas sobre viciados em drogas ou cidadãos comuns tentando viver no meio de tudo isso é uma quase-verdade. O olhar aqui é o de um homem jovem, negro, pobre que olha para diversos momentos, situações, vibes e companhias de seus personagens: o belo e lírico enredo do garoto de O Caso da Borboleta e a visão de outro garoto num dilema de confinaça em Roleta-russa; uma lenda urbana escolar em Primeiro Dia; o pichador que queria largar o picho em O Rabisco; o jovem que só queria se drogar com a nova namorada e os amigos e curtir uma praia no Ano-Novo, em A Viagem; um maconheiro gente boa numa cena de crack em Estação Padre Miguel; e um corre infernal para conseguir maconha em Sextou. Passando o olho na página da Cia das Letras no Facebook, vendo algumas reclamações à obra, uma das que mais me fizeram rir foi a seguinte: “mas isso aí só fala de droga e arma!“. Concluam vocês mesmos o que podemos tirar dessa observação.

Em separado, quero destacar o conto que, para mim, não é apenas o melhor do livro, mas um dos melhores das últimas safras do nosso mercado editorial: O Mistério da Vila. Absolutamente tudo nesse conto funciona e o lirismo que vimos em O Caso da Borboleta retorna aqui, em dose máxima. A forma como o autor representa faixas etárias tão distintas e tão bem, em um mesmo contexto, falando sobre afeto, religião, sincretismo, gerações e infância é de uma beleza e força ímpares, com um final sólido emocionante, sob diversos aspectos. O recorte do cotidiano e da vida feito por Geovani Martins é um recorte específico, realista e que está no cotidiano de milhões de brasileiros, direta ou indiretamente. Ver uma literatura assim ganhar bastante espaço em tão pouco tempo é um sinal editorial curioso (a atenção voltada para essa literatura de representatividade é um ganho enorme e deveria mostrar ainda mais grupos sociais) e com frutos, como o que temos em O Sol na Cabeça, já inicialmente deliciosos.

O Sol na Cabeça (Brasil, 2018)
Autor: Geovani Martins
Capa: Alceu Chiesorin Nunes
Editora: Companhia das Letras
119 páginas

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