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Crítica | O Tiro Que Não Saiu Pela Culatra

por Gabriel Carvalho
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“Quando eu era uma menina, Grover Cleveland era presidente.”

Steve Martin tem uma coleção enorme de filmes que surgem, infelizmente, com menos e menos frequência em decorrência do passar dos anos. A maioria deles, incrivelmente, tem traduções de títulos assombrosas. O Tiro Que Não Saiu Pela Culatra definitivamente não tem nada de exceção. O que essa expressão tem a ver com o filme? Eu tenho certeza de que eles – os gênios por trás de outros trabalhos, como Antes Só do que Mal-Acompanhado – colocaram a primeira coisa infame que pensaram em algum sonho obscuro, sem nem ao mesmo assistir ao longa-metragem. A todo vapor, Ron Howard já havia rodado alguns sucessos comerciais e de crítica, como Splash: Uma Sereia em Minha Vida, produto o qual eu me recuso a acreditar que é aclamado da forma que foi em seu lançamento. Minhas frustrações com a pequena sereia nova-iorquina deixadas de lado, vamos falar do melhor trabalho nos anos 80 de Ron Howard. A obra, protagonizada pelo célebre comediante, é uma história sobre famílias; os cuidados de pais em relação aos seus filhos e a saúde psicológica e amorosa que eles lutam para nutrir, mas acabam sacrificando em prol de suas criações. Na superfície de tudo, uma narrativa convencional, leve e divertida, que faz mais de duas horas de duração não soarem tão longas quanto indicavam na tela da televisão.

Em um primeiro plano, se tem alguma lista de filmes que começam muito bem, O Tiro Que Não Saiu Pela Culatra certamente está nela. O roteiro já dá a base necessária para que acreditemos no carinho e atenção que Gil Buckman, personagem de Martin, dá aos seus filhos. Como qualquer família, existem problemas na estrutura familiar de Buckman, corroendo intensamente o instinto protetor do pai, visto que seu sonho maior, já pontuado na introdução, é ser um figura paterna melhor que a do seu pai. A presença paterna, aliás, é algo que retorna em outro núcleo, o de Helen Buckman (Dianne Wiest), irmã de Gil, que luta para ter a atenção de seus filhos, principalmente a de Garry, interpretado por um jovem Joaquin Phoenix; performance um pouco longe da capacidade dramática que o ator provaria ter mais para frente em sua carreira. Com isso, o filme vai intercalando não só entre esses núcleos, como entre os núcleos de Frank (Jason Robards), pai de Gil e companhia, e Susan (Harley Kozak), outra irmã do protagonista. Enquanto Ron Howard leva a câmera pelos cenários, com uma movimentação fluida que dinamiza as relações em cena, a filha de Helen, Julie (Martha Plimpton), está em uma relação de amor e ódio com o abobalhado Todd Higgins (Keanu Reeves, em um papel convincente, coeso e divertidíssimo).

No mais, enquanto Dianne Wiest transpõe uma mãe cheia de camadas, verdadeira em suas imperfeições, na incapacidade de segurar o mundo com suas mãos, o núcleo de Susan e seu marido Nathan (Rick Moranis) acaba sendo mais robótico, com a graça de se ver um pai tentando levar conhecimentos adiantados para sua filha pequena indo rapidamente para o exagero, não soando crível. O comentário sobre “não subestimar as crianças” logo se perde no meio de escolhas absurdas, e tal arco não encontra espaço para competir com os demais que, senão coerentes entre si em uma linha narrativa única, criam uma mensagem mais uniforme sobre paternidade e maternidade. Os segmentos entre Nathan e Susan denotam uma preocupação maior do roteiro com o casal do que com a criança, o que seria uma abordagem bem-vinda se não prejudicasse toda a tramoia envolvendo a filha dos dois. Conclui-se este pedaço da obra, portanto, como uma bonitinha, mas genérica história de superação no amor. No resto do filme, porém, apesar de nada ser substancialmente inesperado, e haver pressas corriqueiras em se chegar a determinados pontos da história, incluindo, no caso, problemática(s) de gravidez com (alg)uma(s) das personagens surgindo do nada, o longa-metragem permanece com uma suavidade e um encanto inabaláveis.

Para chegarmos a esse estado, temos ao nosso lado o sensacional Steve Martin e seu personagem Gil, fraquejado diante de crises mundanas que não podem ser resolvidas de uma hora para a outra. Por outro lado, suas tentativas inabaláveis de ver seus filhos felizes, especialmente Kevin (Jasen Fisher), nos trazem algumas cenas, de certa forma, tocantes, capazes de nos deixar com sorrisos imensos nos rostos por minutos, como na imitação de caubói feita pelo ator, um momento na obra aliada com uma ótima trilha sonora. Ademais, a relação de pai e filho, no que tange os personagens de Martin e Robards, não encontra no texto muito para se ser falado – a hora para aquele diálogo certeiro, mais dramático, passa em branco – mas o mínimo para que nos apeguemos a jornada própria de Frank continua. Outrossim, quem rouba mesmo todas as cenas é a Vovó (Helen Shaw), divertidíssima e inesperadamente sábia. Na falta de melhores palavras, fofa. De fato, os problemas de Gil não irão embora, sendo utópico pensar que, após a descida dos créditos, todas as quatro famílias irão viver seus felizes para sempre. A mensagem de que podemos passar por uma montanha russa sem perder a cabeça, que seja brega e antiquada dentro dos conformes da vida real, nos fornece, neste filme divertidamente simples, um pouco de alívio durante duas horas que terminam deixando uma sensação frutífera em nós.

O Tiro Que Não Saiu Pela Culatra (Parenthood) – EUA, 1989
Direção: Ron Howard
Roteiro: Lowell Ganz, Babaloo Mandel
Elenco: Steve Martin, Mary Steenburgen, Dianne Wiest, Jason Robards, Rick Moranis, Tom Hulce, Martha Plimpton, Harley Jane Kozac, Dennis Dugan, Joaquin Phoenix, Keanu Reeves, Jasen Fisher, Helen Shaw, Eileen Ryan, Paul Linke, Alisan Porter, Zachary La Voy, Alex Burral, Max Elliott Slade
Duração: 124 min.

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