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Crítica | O Último Voo do Flamingo

Uma recriação de mundos.

por Luiz Santiago
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Então, o flamingo se lançou, arco e flecha se crisparam em seu corpo. E ei-lo, eleito, elegante, se despindo do peso. Assim, visto em voo, dir-se-ia que o céu se vertebrara e a nuvem, adiante, não era senão alma de passarinho. Dir-se-ia mais: que era a própria luz que voava. E o pássaro ia desfolhando, asa em asa, as transparentes páginas do céu. Mais um bater de plumas e, de repente, a todos pareceu que o horizonte se vermelhava. Transitava de azul para tons escuros, roxos e liláceos. Tudo se passando como um incêndio. Nascia, assim, o primeiro poente. Quando o flamingo se extinguiu, a noite se estreou naquela terra.

Mia Couto

O que mais impressiona um espectador em um filme? O enredo de uma obra cinematográfica tem o poder de encantar (no sentido mágico) a uma plateia inteira? Sabemos que essa impressão quase sobrenatural de um filme está além da perfeição técnica ou boa direção de atores. Ela se dá quando o diretor encadeia uma série de elementos simbólicos, formais e psicológicos, gerando um mundo tão amplo de interpretações que a experiência cinematográfica fica ainda mais intensa após os créditos finais do filme, uma proeza rara em nossos dias.

O Último Voo do Flamingo (2010), adaptação do moçambicano João Ribeiro para o romance homônimo de Mia Couto, preenche todos os requisitos de um filme mágico. Acrescido das questões sociais, políticas e culturais africanas, a criativa adaptação consegue jogar com a fidelidade e as mudanças necessariamente cinematográficas, resultando numa versão da história tão maravilhosa quanto a do livro.

O enredo é trabalhado de modo muito criativo (no livro, temos uma narração em primeira pessoa, mas isso não acontece em momento algum do filme). A chegada de um representante da ONU a Tizangara (Moçambique) em 1994, para investigar misteriosas mortes de soldados na região é apenas o ponto de partida para um desfile antropológico tão culturalmente farsesco quanto o brasileiro Terra Deu, Terra Come (2010). A coprodução luso moçambicana, mais do que compor um elenco étnico para tal proposta, serviu para aumentar o efeito global dessa história cheia de fantasia e religiosidade, caráter fílmico resumido em uma frase da prostituta Ana Deusqueira (interpretada pela bela e ótima atriz brasileira Adriana Alves): “Eu sou de toda parte”.

O que nos impressiona em O Último Voo do Flamingo é a adição de recursos narrativos comuns a uma trama absolutamente exótica. O suspense investigativo é posto no meio de um mundo místico e o diretor consegue trazer para a película o modo personalíssimo de Mia Couto tratar a política nacional, o colonialismo e a sociedade de Moçambique sem “desafricanizar” ou romancear as culturas locais. No suspense construído em meio ao mundo mágico, todos são potencialmente culpados. Com indícios hitchcockianos de construir o suspense, João Ribeiro alterna a força dramática e o ritmo interno dos planos em que aparecem os mais diversos suspeitos. Um fator de destaque é que mesmo tratando de assuntos burocráticos ou estatais, a tradição ancestral é sentida e se faz presente em tudo.

Se podemos julgar o artificialismo do elenco de apoio como um ponto negativo junto às muitas “cenas dispersas” do filme, temos aí os seus únicos tropeços. Afora isso, a película de João Ribeiro logra encantar o espectador com um sem-número de fenômenos e eventos culturais de seu país de origem. A fotografia do português José Antônio Loureiro pincela com cores vivas os quadros da película, e dá à imagem em 35mm uma aparência novelística, quase teatral. A música de Omar Sosa sustenta a atmosfera macabra e dá contornos mais evidentes ao suspense que se arquiteta aos poucos.

O final lírico e esteticamente muito belo, nos brinda com uma das sequências mais inspiradas do cinema. Transformar em imagem a riqueza literal de O Último Voo do Flamingo foi um teste de criatividade a que o diretor João Ribeiro se submeteu, e devo admitir como leitor das obras de Mia Couto, que o resultado é quase uma obra-prima. Salvo os obstáculos já citados – e talvez um ou outro problema formal relacionado a eles – temos um filme tão belo e tão apaixonante que o misterioso desfecho quase chega ao que se chama de “apoteótico”, não entrando nessa categoria pela sutileza e lirismo com as quais é plasmado.

Entre belas paisagens de Moçambique e acontecimentos insólitos, num misto de gêneros e tendências de abordagem, O Último Voo do Flamingo recria o imaginário social e local de um país recém saído da guerra. Podemos vê-lo como um filme-gênese porque traz a semente de inúmeras discussões. Acima de tudo, a obra nos apresenta o que todo evento polêmico, social ou cultural, realiza: inventa os fatos antes de transformá-los em verdade. O que resta, são as várias versões da história, como a carta que o oficial Massimo Risi escreve aos seus superiores da ONU, relatando o fim do mundo. O mundo que termina para Risi em sonho, é a aproximação do seu “eu” transferido para uma remota vila africana onde se encontra com a “vida”. A alma migrante do soldado italiano chega ao seu destino final, e com a paz resultante desse encontro, o flamingo, pássaro revelador da luz, parte para sempre, já que não há mais nada ou ninguém a orientar.

O Último Voo do Flamingo (Moçambique, Portugal, 2009)
Direção: João Ribeiro
Roteiro: Gonçalo Galvão Teles, João Ribeiro (baseado na obra de Mia Couto)
Elenco: Carlo D’Ursi, Eliote Alex, Adriana Alves, Cândido Bila, Mário Mabjaia, Alberto Magassela, Gilberto Mendes, Claudia Semedo
Duração: 86 min.

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