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Crítica | Ontem Nunca Termina

por Luiz Santiago
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estrelas 4,5

Eu tenho profunda admiração por artistas que conseguem fazer das dificuldades de seu tempo um trampolim para a criação de algo crítico sobre o momento. Ontem Nunca Termina é o tipo de filme que se enquadra nessa concepção. Dirigido pela catalã Isabel Coixet (dos ótimos A Vida Secreta das Palavras e Fatal), o filme faz da atual crise espanhola e europeia o argumento inicial de sua existência, levando-nos para o ano de 2017, numa espécie de fundo do poço para a economia e sociedade espanholas, um dos ingredientes caóticos de toda a bagunça dissecada pelo roteiro.

Um casal separado já a algum tempo se encontra para conversar sobre algo sério. No início do filme não sabemos do que se trata, mas ao passo que o diálogo avança, percebemos que o caso urgente é a desapropriação do cemitério onde o filho deles está enterrado. Segundo informações, o local será demolido para a construção de um Cassino (que ironia!). Esperando um funcionário do estabelecimento trazer os devidos papeis, o casal trava uma conversa. Os assuntos aí falados, debatidos, sussurrados e gritados serão a alma do filme, que já no título nos inquieta com uma afirmação verdadeira para todos, e que se encaixa perfeitamente à realidade da obra.

A concepção estética da fita é digna de admiração. Coixet, que também escreveu o roteiro do filme, guia apenas dois atores por um longo caminho de acerto de contas em diálogos ou solilóquios capazes de mover o mais duro coração. Ao início, não temos certeza de que a dupla se conhece. Eles se tratam de maneira quase formal, e um humor nervoso se apresenta nas primeiras frases trocadas pelos dois, característica que irá perdurar durante toda a obra.

É impossível não comparar o modelo cênico do filme com o modelo teatral, e não faço essa comparação de maneira negativa. O que quero dizer é que a dinâmica de encenação em cada metro do espaço escolhido pela diretora nos lembra muito a de uma peça, com deslocamentos movidos por pontos estratégicos do roteiro, que não só ajuda a manter a atenção do público mas também acrescenta dinamismo e cor dramática ao que se está falando. E mesmo que uma cor fria se mantenha em todo o filme, há uma nuance fotográfica particular em cada sequência, acompanhando o entardecer/anoitecer e o aumento da densidade do diálogo.

Paralelo a essa reflexão de um passado aparentemente superado mas que na verdade nunca morreu, temos flashbacks e interferências psicológicas do casal, muitas vezes trazendo à tona o já citado humor nervoso do filme; mas na maioria das vezes, acrescentando para nós coisas que são pensadas, mas não ditas por eles. Não se trata de uma forma narrativa inovadora, é claro, mas o modo como ela é aplicada tem um fôlego diferente e é delicioso ver isso na tela.

Diferente das cores frias do presente caos, os flashbacks são fotografados em grande contraste, com luz direta estourando e cores vivas dominando o quadro. Os pensamentos e lembranças isoladas do casal são filmados em preto e branco, criando um triângulo de cores e emoções com as duas outras linhas sensitivo-temporais do filme.

Javier Cámara e Candela Peña seguram a película com unhas e dentes. Que interpretações! É bem raro ver um casal de atores levar um roteiro com esse peso com tamanho empenho e elogiável atuação. Como já foi dito, a apresentação dos dois é bem impessoal, eles falam pouco no início, e quando falam, quase nada faz muito sentido. Todavia, os mistérios sobre eles e sobre suas vidas, seus pensamentos e angústias são revelados, e nesse ciclo, as emoções vêm à flor da pele, o que significa lancinantes cenas de desespero, calorosas cenas de desejo, carinho, afeto e marcantes cenas de alegria e tristeza. Tudo está lá, de maneira bem dosada e nos momentos certos do filme.

Isabel Coixet integra a atual crise da Espanha ao ápice das crises pessoais de C. e J., o casal angustiado do filme. Mesmo que tenham empreendido fugas, criado ironias para cada resposta dada, ficções e vidas independentes para si, ambos sofrem do peso de um passado perturbador, um passado que permaneceu descoberto, apodrecendo ao tempo e insepulto pela memória. O resultado dessa covardia (ou extrema coragem?) é um filme sobre um dos casais mais humanos dos últimos tempos, um casal adultos que discute suas vidas como qualquer casal em grande crise faria.

Com problemas reais em um mundo real na ficção que é o cinema, C. e J. lutam por suas vidas numa última tentativa de estabelecer contato com a sanidade, um exercício periódico para nós, que vivemos em um tempo onde o presente se impõe o tempo inteiro e onde nem sempre o passado pode ser classificado como “bem resolvido”.

Ontem Nunca Termina (Ayer no termina nunca) – Espanha, 2013
Direção: Isaber Coixet
Roteiro: Isabel Coixet
Elenco: Javier Cámara e Candela Peña
Duração: 108 minutos

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