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Crítica | Os Demônios (1971)

por Leonardo Campos
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A tenebrosa trajetória das freiras de um convento francês, supostamente possuídas por entidades demoníacas, já rendeu produções cinematográficas polêmicas e provavelmente inspirou a profanação do “sagrado” presente em outros filmes de temática tangente.  Censurado em diversos países e considerado “impuro” por muitos espectadores que saíram surpresos da exposição ao filme, Os Demônios foi dirigido por Ken Russell, em 1971, produção que reconta o que já havíamos visto em Madre Joana dos Anjos, acontecimento histórico brilhantemente estudado em A Possessão de Loudun, de Michel de Certeau.

O historiador analisa como os documentos datados de 1632 refletiam os conflitos políticos e culturais da época. Loudun tinha passado pela devastação das guerras, pelas mazelas da peste negra e por uma grave crise econômica relacionada a questões religiosas. Foi um momento histórico de postura obtusa da Igreja Católica, com o confronto entre um padre, chamado Grandier, e o Cardeal Richelieu, responsável por envolver o religioso resistente numa trama diabólica com desfecho trágico que encontrou ressonâncias em várias obras posteriores, literárias e sociológicas.

O caso, conhecido como um dos mais famosos no que tange ao forjar de provas em prol de uma condenação de cunho jurídico inspirou o roteiro de John Whiting, baseado no livro Os Demônios de Loudon, de Audous Huxley. O filme, então, aborda a acusação contra um padre que aparentemente se envolveu com rituais de bruxaria no século XVII. Juntamente com a Madre Superiora (Vanessa Redgrave) possuída, outras irmãs começam a entrar no estado de possessão, o que revela uma série de problemas que acometerão aos envolvidos no espaço onde a imoralidade, o pecado e o demoníaco gravitam diariamente.

São vários atos de profanação nada suaves, dentre eles, uma freira que reza e ainda assim, percebe que o padre se transformou na “imagem e semelhança de Cristo”. Por deseja-lo sexualmente, a religiosa possuída adentra a zona da autopunição, numa trama extremamente fora do comum e controversa. Ao passo que a narrativa avança, mais religiosas ficam possuídas, começam a se masturbar com objetos de ordem religiosa e há até mesmo um agressivo estupro durante uma sessão de exorcismo.

Ao respirar questões que estavam no ar desde a frenética década de 1960, Os Demônios foi um filme que antecipou os elementos gráficos de O Exorcista, mas preferiu trafegar pela seara filosófica dos diálogos e ações, metáforas para a questão da presença demoníaca como fruto de uma opressão psicológica entre personagens que agrediam, de alguma maneira, os seus corpos, tendo em vista atender ao celibato e a repressão religiosa. Desejos latentes, opiniões sublimadas e repressão constante eram questões do calendário diário destas criaturas “escravas” dos ditames da Igreja.

No final do percurso, quando o convento já havia ganhado a mesma dimensão de um “antro de prostituição”, a Igreja consegue encontrar o controle e leva o padre acusado inicialmente para ser condenado pela Inquisição. Ele foi um personagem histórico tido como elegante, bonito e muito eloquente. Conforme as vozes polifônicas da historiografia, refletidas no livro de Michel de Certeau citado anteriormente, o padre tinha glamour de sobra, além de sagacidade em atividades que iam além da intelectualidade, características que haviam irritado os representantes da Igreja que pregavam a derrubada dos muros na França, tendo em vista a unificação máxima da “nação”.

Por sua postura antimonarquista, qual o caminho do padre Grandier? A fogueira, claro. Com julgamento registrado em cinco mil folhas em tamanho ofício, o caso de Grandier durou 18 dias. Ele permaneceu diante dos juízes de 15 a 17 de agosto de 1632, sendo culpado por exercer feitiçaria, conjuração de feitiços malignos e responsável pela possessão das freiras do convento, o que culminou na condenação ao fogo para eliminar seus pecados, sem deixar de ser torturado antes, conforme ditava a nossa “santa” Igreja Católica.

Será nesse processo que o filme nos revelará que ele invocou Asmodeus, um demônio da mitologia judaica, normalmente representado por asas e três cabeças (uma de um carneiro, uma de touro e um homem com hálito de fogo), símbolos da virilidade e da fertilidade. Considerado como um dos sete anjos do inferno, hierarquicamente abaixo apenas de Lúcifer, Asmodeus é o demônio que simboliza a luxúria, também representado por um feiticeiro que pode adotar a forma de uma aranha. No folclore judeu, a entidade foi amante de Lilith e por se tratar de um demônio de origem humana, não um anjo caído, possui o livre arbítrio e outras regalias que o permite causar alvoroço por onde passa.

Neste caso, a sua passagem pelo convento trouxe problemas de sobra para os envolvidos na história, o que não impediu que até mesmo alguns representantes da Igreja Católica considerassem os acontecimentos de Loudun como uma grande farsa. Como delineia Huxley no livro que inspirou o roteiro do filme, “vivia-se numa era posterior ao mito de Fausto, sendo assim, o retrato do padre sugeria Mefistófeles em trajes clericais, mais robusto e amistoso”. Curioso e ao mesmo tempo, assustador, não?

Para melhor delinear a construção do filme, torna-se necessário observar a maneira cuidadosa que a equipe técnica deu forma aos temas polêmicos debatidos. A cenografia de Derek Jarman nos oferta um ambiente adornado por símbolos sagrados constantemente profanados por meio da eficiência da direção de arte, assinada por Robert Cartwright. A atmosfera barroca do setor de design ganha ótimos contrastes com os figurinos cuidadosos de Shirley Russell e com a condução musical de Peter Maxwell.

Para contemplar os setores bem cuidadosos descritos anteriormente, a direção de fotografia de David Watkin é caprichosa ao investir em planos-sequência longos e câmera atenta ao momento ideal de abrir e fechar os quadros. Ken Russell opta, por sua vez, pelo caminho mais difícil de realização, numa abordagem filosófica e complexa que pode soar hermética e nonsense para alguns, mas que ainda assim permite ao público entender que estamos diante de uma narrativa onde a opressão causa os maiores males que ela mesma pretende coibir.

Ressalto que para compreender bem Os Demônios, creio ser interessante ler Reagregando o Social – Uma Introdução à Teoria do Ator-Rede, de Bruno Latour. No bojo de suas reflexões, o autor alega que os elementos não humanos agem, pois deixam de ser apenas símbolos de uma significação atribuída pelo homem para ter o papel de agência, isto é, agir no cotidiano e promover transformações. Em seu ponto de vista, o especialista afirma que logicamente, os elementos ditos não humanos na verdade são humanos, pois assim, os atos perpetuados pelo homem perdem a sua carga e passam por uma transferência de responsabilidade, num processo de cura dos seus próprios erros/defeitos. Filosófico e profundo, o que requer algum debate, não é mesmo, caro leitor?

Os Demônios — (The Devil’s) Grã-Bretanha/Irlanda, 1971.
Direção: Ken Russell
Roteiro:  John Whiting, Aldous Huxley, Ken Russell
Elenco:  Vanessa Redgrave, Oliver Reed, Brian Murphy, Andrew Faulds, Barbie Deham, Doremy Verdom, Gemma Jones, Dudley Sutton, Imogem Claire
Duração: 108 min.

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