Home LiteraturaAcadêmico/Jornalístico Crítica | Os Evangelhos de Santo Agostinho: Manuscritos Notáveis, de Christopher De Hamel

Crítica | Os Evangelhos de Santo Agostinho: Manuscritos Notáveis, de Christopher De Hamel

por Luiz Santiago
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Este livro é uma visita a importantes manuscritos medievais, ao que eles nos contam e à razão pela qual são importantes“. Assim começa Christopher De Hamel — considerado o maior especialista em manuscritos medievais do mundo — o seu livro Manuscritos Notáveis, que na concepção do autor, é “apenas o resultado de uma série de entrevistas com obras valiosas“. O volume nos traz análises artísticas, históricas e paleográficas de 12 diferentes manuscritos da Idade Média, organizados em ordem cronológica, a saber: Os Evangelhos de Santo Agostinho (final do século VI), O Codex de Amiatinus (c.700), O Livro de Kells (final do século VIII), O Arateia de Leiden (início do século IX), O Beato de Morgan (meados do século X), Hugo Pictor (final do século XI), O Saltério de Copenhague (terceiro quarto do século XII), Carmina Burana (primeira metade do século XIII), As Horas de Joana de Navarra (segundo quarto do século XIV), Chaucer de Hengwrt (c.1400), O Semideus de Visconti (c.1438) e As Horas de Spinola (c. 1515 – 1520).

Nesse recorte do autor, temos os seguintes temas retratados: evangelhos, livros de horas, astronomia, comentários bíblicos, música, literatura e política renascentista. De Hamel introduz a obra falando sobre a raridade desses documentos, suas andanças por diversos lugares do mundo, seu valor, seus donos e a chegada ao lugar onde estão na atualidade (século XXI). Como cada capítulo encerra-se em si mesmo e trata de um manuscrito diferente, optei por analisar, assim como o autor, cada abordagem em um texto diferente. Aqui, vamos ao mais antigo deles, Os Evangelhos de Santo Agostinho.
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Os Evangelhos de Santo Agostinho

Outros títulos: Gospels of St AugustineEvangelia Cantuariensia
Catálogo: Cambridge, Corpus Christi College, MS 286
Data: final do século VI

NOTA: Para melhor entendimento das discussões que levantarei aqui, deixo claro que muitos aspectos críticos ao exercício doutrinário, cultural e burocrático das religiões — e das milhares de igrejas ao redor do mundo — recebem propositalmente o recorte do Cristianismo. Como estamos falando dos Evangelhos e de Santo Agostinho, não faz sentido algum eu relativizar todos os apontamentos de mudanças na linha central das igrejas, buscando referências nas mais diversas religiões para um mesmo tipo de padrão: a distinção histórica entre igreja como instituição, doutrina e fé. Estou ciente de que isso aconteceu e segue acontecendo em todas elas, e podemos falar sobre qualquer um desses assuntos nos comentários abaixo. Aqui, porém, meu recorte será exatamente o que deve ser: voltado para a fé, a doutrina e a estrutura histórica cristãs.

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Retrato de São Lucas entre cenas do Evangelho e abaixo de seu símbolo, o boi alado.

A primeira coisa que devemos destacar para leitores não familiarizados ou esquecidos, é que o Santo Agostinho a quem pertenceu (ou para quem foi enviado) estes Evangelhos não é o Agostinho de Hipona (Aurelius Augustinus Hipponensis), ou simplesmente Santo Agostinho, um dos mais importantes teólogos e filósofos dos primeiros anos do Cristianismo. O Santo desses Evangelhos é Agostinho de Cantuária, nascido em Roma, no primeiro terço do século IV e falecido na Cantuária, Inglaterra, provavelmente em 26 de maio do ano 604. Sua importância para a igreja católica é enorme. Chamam-no de “Apóstolo dos ingleses”, e não é para menos. Ele fundou a igreja na Britânia, em um momento bastante movimentado da História da Europa. Vamos ao seu contexto.

O Império Romano (do Ocidente), ao contrário do que muita gente pensa, não amanheceu em uma bela manhã de sábado, se espreguiçou e disse “uh, caí!“. Seu despedaçamento aconteceu lentamente, fazendo com que cada elemento de grandeza fosse minado, extinto, reformado ou substituído para atender a novas necessidades, em sua maior parte, pouco favoráveis ao Império. Uma das decisões desesperadas em seus últimos anos de existência foi a retirada das Legiões Romanas da Britânia, no ano 410, em meio a uma constante tentativa de invasões saxônicas vindas do sul. 66 anos depois o Império Romano chegava ao fim, sob o reinado caótico de Rômulo Augusto, o último imperador romano do Ocidente. Começava, aí, a Idade Média.

A organização da igreja no primeiro século após a queda de Roma tomou os mais diversos rumos, sempre com uma grande tentativa do Papa em aglutinar fiéis para fortalecer seu posto de autoridade, ao mesmo tempo em que influências nas periferias do antigo Império (exatamente como acontecera pouco mais de um século antes, na política) acabavam tendo mais força do que o poder central. E assim chegamos à eleição do Papa que nos interessa nessa empreitada. No dia 3 de setembro de 590, Gregório Anício (também chamado de Gregório I, Gregório Magno; Gregório, o Grande e Gregório, o Dialogador), da Ordem de São Bento, se tornava Papa. Neste momento é que começa a germinar a semente do manuscrito medieval que aqui temos em análise.

A abordagem de  Christopher De Hamel para a introdução desse ambiente (seguindo por um caminho diferente do meu, na crítica) é aplaudível e muitíssimo bem feita, além de ser escrita com grande proximidade com o público, sem uso de termos exclusivos para profissionais e estudiosos da área (e quando tem algo parecido, ele faz questão de trazer o que aquilo significa, facilitando para olhos leigos), e sem uso abusivo de notas de rodapé, algo que o próprio autor diz ter problemas e que evita ao máximo, tornando a leitura de seu texto já muito acessível, ainda mais divertida, de fato se parecendo com uma entrevista com o manuscrito dos Evangelhos.

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Diferentes cenas dos Evangelhos desenhadas no manuscrito. Quantas vocês conseguem identificar?

Ele faz questão de explorar tudo: as conjunturas históricas da produção do manuscrito, as inconstâncias de tradução bíblica, as alterações no texto feita ao longo do tempo, o estado de conservação, as folhas que faltam, as condições atuais de armazenamento, os pigmentos usados para as cores das duas únicas páginas ilustradas que sobraram, e mais uma esplêndida leitura de situações críticas em torno do documento, que após o Papa Gregório enviar a Agostinho, para evangelizar na Cantuária em 597, a fim de converter o rei Etelberto e seus súditos do paganismo saxão, deu início à longa jornada de um texto que teria importância até para a Reforma da igreja na Inglaterra, séculos e séculos depois.

No mapa temático abaixo, temos a situação da Britânia (Grã Bretanha) por volta do ano 600, ou seja, apenas 3 anos depois de Santo Agostinho chegar com o catolicismo à ilha, tornando-se, com sua fundação, o 1º Arcebispo da Cantuária. Em cor cinza, temos os povos celtas; em rosa, os anglos; em marrom, os saxões; e em amarelo os jutes (povos germânicos). Onde está marcado o território de Kent, na região dos jutes, é onde fica a Cantuária, local onde se estabeleceu um Mosteiro em homenagem a São Pedro e São Paulo, e a Sede Episcopal, todos fundados por Santo Agostinho. Neste lugar, cercado de povos bélicos, pagãos (com raros grupos cristianizados, mas de maneira sincrética — ou seja, misturando elementos do cristianismo com outras religiões), foi que repousou os presentes livros dos Evangelhos. Em sua abordagem, De Hamel não deixa de fazer o exercício histórico da dúvida, comparando dados, versões documentais, bibliográficas e alegações de que esses livros escritos a mão, em couro de animal e que tiveram incursões anglo-saxãs lá pelo século X, possam ter pertencido a outras pessoas ou não devem ter estado na Cantuária no tempo de Agostinho (lembrando que esses Evangelhos também estão associados a São Melito de Cantuária). Tudo é levado em consideração na análise paleográfica, tornando a visão do manuscrito ainda mais interessante.

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Quando nos deparamos com alguma opinião cristã biblicamente literal demais, ou uma interpretação “dona da verdade” da Bíblia, e conhecemos algumas histórias ligadas a mudanças, traduções, reuniões de pessoas para decidir o que é cânone ou não e alterações culturais para interesses de algum grupo, família ou mesmo indivíduo (normalmente relacionado a um posto de poder), nossa reação de cansaço é mais do que justificada. O valor histórico, artístico, cultural e até de fé que carrega um manuscrito como este é uma das provas de que as muitas versões do Cristianismo hoje existentes são resultantes de um processo muito mais pessoal e muito mais mundano do que a maioria dos religiosos gostariam de entender ou admitir. Por outro lado, para os que entendem e admitem esse processo, há certamente uma bela prova de fé e uma postura bastante admirável, infelizmente hoje rara. São os cristãos que realmente entenderam o que o apóstolo Paulo quis dizer com “a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem“. Hebreus 11:1.

Agora imaginem vocês que este mesmo manuscrito, com todas essas andanças, mudanças, donos e história, foi a base teológica para que um outro Arcebispo da Cantuária, Matthew Parker (que ocupou o cargo entre 1559 e 1575), arquitetasse primariamente os chamados Trinta e Nove Artigos de Religião, que estabelecia as colunas da doutrina anglicana em meio ao caos teológico e político da Reforma Inglesa, fazendo interpretações e leituras especiais do referido documento (do qual agora era dono) para diferenciar a sua maneira de ver e exercer o Cristianismo, opondo-se à maneira que a doutrina calvinista e doutrina católica romana o viam e exerciam. E lá se ia mais uma entre as muitas visões de uma mesma religião. Tudo isso tendo como motor e inspiração uma reprodução à mão dos Evangelhos, datada do final do século VI. Definitivamente, um manuscrito notável.

Em tempo: a quem interessar, uma versão eletrônica desse manuscrito pode ser vista online, no Parker Library On the Web. Para consultar, clique aqui e digite o catálogo do manuscrito no campo de busca, para encontrá-lo mais facilmente: MS 286.

Os Evangelhos de Santo Agostinho (Manuscritos Notáveis) — Meetings with Remarkable Manuscripts (Reino Unido, 2016)
Autor: Christopher De Hamel
Editora original: Allen Lane
No Brasil: Companhia das Letras (2017)
Tradução: Paulo Geiger
Capa: Victor Burton
678 páginas

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