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Crítica | Os Incompreendidos

por Luiz Santiago
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estrelas 5,0

Os Incompreendidos (1959), longa de estreia de Fançois Truffaut, é tido por muitos como o primeiro passo da Nouvelle Vague, movimento de liberdade técnica e narrativa que marcou o cinema francês – e muitos outros cinemas nacionais nele inspirados – de meados dos anos 50 até meados dos anos 70. Mesmo não sendo, de fato, o “ponto de partida da Nouvelle Vague” *, o filme teve um impacto imediato e colossal na sétima arte, popularizando o movimento vanguardista que fervilhava na França e inspirando realizadores e espectadores pelo mundo todo.

O longa foi indicado ao Oscar de Melhor Roteiro e deu a Truffaut o primeiro prêmio de Melhor Diretor em Cannes, além da nomeação à Palma de Ouro. O jovem cineasta que fazia ali uma quase autobiografia, começava a carreira com o pé direito e fixava o seu nome nas tábulas da história do cinema.

Truffaut e Marcel Moussy criam uma história universal sobre as relações humanas, especialmente no campo familiar e infanto-juvenil, mostrando-nos a difícil adaptação de Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud, aos 15 anos, vivendo, em uma interpretação inesquecível, o alter ego de Truffaut) em relação à sua escola, sua família e o mundo à sua volta. Dentre todos os subtemas que podemos trazer à tona, o mais impressionante é a solidão, sentimento que marca a vida de Doinel do começo ao fim do filme, especialmente no fim, com a metáfora da corrida na areia da praia, o imenso mar no horizonte e a música simples e intimista marcando os sentimentos do protagonista e do próprio espectador.

Já em seu primeiro longa, Truffaut realizava uma história de amor marcada pela dificuldade, mas aqui a questão não é o amor como flerte, erótico, a exemplo do que ele faria em Antoine e Colette, filme que dá continuidade à história de Doinel. O amor aqui é familiar em dois sentidos: na relação dos pais do protagonista e do jovem em relação aos pais. No decorrer do filme, vemos cenas do dia a dia de ambos os lados, mas é a mãe e Doinel quem ganham maior destaque.

Ao abordar essa relação difícil, Truffaut faz uso do próprio cinema como modelo e visita gêneros e filmes, dando uma profundidade ainda maior aos personagens e às situações. A ligação com Zero de Comportamento (1933) e O Pequeno Fugitivo (1953) recebe recriações louváveis na tela, e o filme ainda traz indicações visuais ou literais de Boudu, Salvo das Águas, Mônica e o Desejo e Paris nos Pertence. É como se ao mesmo tempo que criasse uma trama séria sobre a solidão, a relação entre pais e filhos, a responsabilidade do amadurecimento e o abandono, Truffaut se permitisse brincar um pouco, colocando uma altar a Balzac, mostrando cenas de brincadeiras de criança em sala de aula e dando um contexto misto de gângster e noir a Antoine Doinel em todo o drama do roubo da máquina de escrever.

A montagem de Marie-Josèphe Yoyotte serve muito bem a esse propósito de jogo cinematográfico, agrupando sequências das crônicas como esquetes incrivelmente bem interligados, falhando raríssimas vezes no desenvolvimento, especialmente no contexto escolar de Doinel, porém, nada que roube o brilho da obra ou das cenas em questão.

Destacando vários lugares de Paris, transitando entre a crise dos espaços internos e a possível liberdade que o externo, a rua, a cidade podem trazer para alguém, Truffaut passeia com a câmera, seguindo Doinel e seu melhor amigo, acompanhando a confusão do garoto e permitindo-nos conhecê-lo melhor do que seus próprios pais ou professores.

A forma como o diretor guia a obra, tal qual um diálogo sobre o dia a dia de um adolescente rebelde, nos aproxima ainda mais do que vemos na tela porque nos identificamos, em algum ponto, com o que está acontecendo e isso não só para o cenário adolescente mas também para o cenário infantil, que, aliás, tem uma ótima representação no longa, com direito ao metalinguístico diálogo com o teatro (a apresentação de fantoches em “oposição” ao cinema) e uma séria denúncia do cineasta para as relações injustas entre professores e alunos; permissivas demais ou exageradas entre pais e filhos; e burocrática e pouco humana entre o Estado e os indivíduos.

Os Incompreendidos, que Truffaut dedica à memória de André Bazin, é um filme sobre a breve felicidade e o sofrimento. Sobre a solidão; o quão importante é o papel da família para um filho e, principalmente, sobre quão complexo pode ser o mundo daqueles que estão começando a vida, por assim dizer. Ao relembrarmos a icônica cena de Doinel com a psicóloga, vemos não só o denso projeto de um inesquecível personagem do cinema, mas a gênese de um grande ator e uma das formas mais interessantes de se colocar na tela a história de vida de um cineasta, coisas que só uma obra-prima poderia fazer com excelência, exatamente como faz Truffaut, em Os Incompreendidos.

* A expressão “Nouvelle Vague” surgiu em 1958, na revista L’Express, e foi cunhada por Françoise Giroud para definir a nova geração do cinema francês e seu estilo e meios financeiros e artísticos de produzir cinema. Em retrospecto, classificamos como filmes nouvellevaguistas, antes de Os Incompreendidos, as seguintes obras: La Pointe Courte (Agnès Varda, 1955), Bob, o Jogador (Jean-Pierre Melville, 1956), …E Deus Criou a Mulher (Roger Vadim, 1956), Ascensor para o Cadafalso (Louis Malle, 1958), Os Amantes (Louis Malle, 1958), Nas Garras do Vício (Claude Chabrol, 1958) e Os Primos (Claude Chabrol, 1959). Na semana seguinte ao lançamento de Os Incompreendidos, estreava nos cinemas franceses um outro do movimento, Hiroshima Meu Amor (Alain Resnais, 1959).

Os Incompreendidos (Les quatre cents coups) – França, 1959
Direção: François Truffaut
Roteiro: François Truffaut, Marcel Moussy
Elenco: Jean-Pierre Léaud, Claire Maurier, Albert Rémy, Guy Decomble, Georges Flamant, Patrick Auffay, Daniel Couturier
Duração: 100 min.

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