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Crítica | Os Relógios, de Agatha Christie

por Luiz Santiago
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Os Relógios foi lançado em 1963, na penúltima década de publicação das obras da Rainha do Crime. Em meio às perseguições, medos e desconfianças da Guerra Fria, Agatha Christie criou uma história que ressaltava os maneirismos dessa época, na Europa, com uma certa camada política (não aprofundada, mas brevemente exposta em diálogos) falando da Cortina de Ferro, do socialismo, de nacionalismo e dever para com a pátria. Como é característico dos livros da autora, há sempre referências à Grande Guerra (neste caso, à Segunda, onde toda a ambientação cairia bem melhor e com personagens de ações menos… anacrônicas) e memórias desse período são destacadas nas lembranças dos mais velhos. Mas esta é só a camada menos interessante do livro. Boa mesmo é a relação com o tema principal. A história dos relógios.

Imaginem o seguinte cenário: um homem é encontrado assassinado na casa de uma mulher cega, a senhorita Pebmarsh. Na cena do crime, quatro relógios marcando 4h13 são encontrados, mas as peças não pertencem à dona da casa. O corpo é encontrado por uma estenógrafa chamada Sheila Webb, que fora solicitada para trabalhar para a senhorita Pebmarsh, só que a velha senhora não tinha solicitado nenhum serviço de estenografia. O caso cresce, surpresas agradáveis e desagradáveis aparecem e mais uma vez, o leitor é arrastado para um circo de tragédias sucessivas, onde suspeitas iniciais não darão em nada, até que venha a revelação para o caso for dada por Hercule Poirot.

O ponto mais fraco da obra é a linha de investigação paralela do biólogo marinho trabalhando para a Inteligência Britânica (ou Serviço Secreto), Colin Lamb. Inicialmente, tudo relacionado a ele é um grande enigma. Por um momento, há até um certo cinismo da autora a sugerir que ele tinha algo a ver com o assassinato inicial, mas é apenas uma piscadela rápida para o público. À medida que a história avança, vemos sua investigação aparecer e quanto mais ela se revela, menos interessante fica, chegando a atrapalhar a principal linha de investigação, encabeçada pelo Detetive Hardcastle.

A ação pessoal de Colin só vem ter uma melhor representação na reta final, quando ele protagoniza dois dos melhores momentos da obra: a entrevista com uma garotinha de perna quebrada e o último encontro com a senhorita Pebmarsh, que é bom no diálogo, mas não exatamente na revelação, que torna tudo coincidência demais. É um paradoxo conceitual, como podem ver. Sem a linha de investigação, a última sequência não poderia acontecer. Mas ela é muito boa. E talvez tenha essa força toda justamente por ter sido parte de uma investigação sobre vazamento de informações do governo britânico para o estrangeiro (só depois sabemos que “os vermelhos” estavam envolvidos). É o velho caso de escolher o melhor dos venenos literários.

Mas enquanto a investigação de Colin denota o elo fraco de Os Relógios, a investigação de Hardcastle (às vezes acompanhado pelo amigo Colin) é toda a força do volume. Pela quantidade de mistérios aparentes, pelo desenvolvimento das personagens e audácia do criminoso, tudo aponta para um beco sem saída. Convenhamos que a revelação do crime, em um dos ótimos momentos de Poirot no livro, seja um tantinho confusa e forçada no elemento fraterno que o Detetive aponta, mas a visão do que aconteceu é, no todo, bastante satisfatória e muito inteligente. Mesmo depois de tantos livros lidos de Agatha Christie, não consegui chegar a um número de palpites que fossem pelo menos metade verdadeiros [NOTA: eu escrevi esse texto antes de A Aventura do Pudim de Natal, onde de fato meus palpites deram em alguma coisa. Melhor ainda: estavam todos certos]. Aqui, nada do que eu imaginei era verdade.

A trama possui uma boa alternância entre ação, reflexão e coleta de pistas, basicamente, os três elementos que a autora gosta de destacar em suas obras, dependendo do livro, dando maior ou menor atenção a um deles. Mesmo durante os depoimentos, existem deixas e indicações sobre o estado de espírito dos entrevistados, sobre objetos da casa ou do quintal que imaginamos fazer parte do crime… tudo parece conectado, inclusive no campo metalinguístico, quando a autora usa Poirot para fazer uma auto-crítica e através disso, brincar com o seu próprio ofício, o de escritora de mistérios. É delicioso ver como ela manipula esse aspecto já desde o começo, com a apresentação das estenógrafas e observações a respeito da qualidade de escrita de certos autores, como por exemplo, “ele era um exemplo notável do fato de que nada pode ser mais chato do que pornografia chata“.

Os Relógios tem bons momentos de humor, uma paixão acidental um tanto chocha, um crime bizarro sob todos os ângulos que se possa olhar e um caminho de investigação que nos lembra o tempo inteiro o cenário de Janela Indiscreta. Mesmo com uma investigação paralela de pouco interesse para o grande enredo, o leitor se vê imerso e engajado em descobrir o que está acontecendo. Um exercício e tanto, dado o cenário e as condições em que tudo acontece.

Os Relógios (The Clocks) — Reino Unido, 7 de novembro de 1963
Autora: Agatha Christie
No Brasil: Editora Globo
Tradução: Elton Mesquita
333 páginas

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