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Crítica | Paixão dos Fortes

por Luiz Santiago
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Muito antes de tornar lendária a frase do “publique-se a lenda” em O Homem Que Matou o Facínora, John Ford já vinha há muito preferindo essa forma de narrativa dos fatos ao rigor histórico tão valorizado no cinema. Isso não quer dizer que o diretor nunca tenha abordado o western, o drama, a comédia ou a guerra com realismo, mas, mesmo nessas ocasiões, sua verdade abria espaço para “aquilo que a História oficial não contou”, para o que ele imaginava ter sido verdade ou que tenha ouvido de alguém como verdade. Levando isso em consideração, o longa Paixão dos Fortes é a sua realização que mais se assume como lenda divulgada.

Em 1927, Ford conheceu Wyatt Earp pessoalmente e, até a morte do famoso xerife em 1929, eles estiveram relativamente próximos segundo relato do próprio Ford para James Stewart e Henry Fonda em um documentário feito para a CBS em 1971. Earp se tornou, inclusive, um visitante de honra no set de filmagem de Justiça do Amor (1928), quando, durante os cafés que tomava com Ford nos intervalos, acabou narrando a história de como aconteceu o tiroteio do OK Corral, em Tombstone, Arizona. Ford assegura que o roteiro de Paixão dos Fortes mostra precisamente aquilo que ele ouviu de Wyatt Earp, uma versão que obviamente contrasta com a ‘história oficial’.

Percebe-se que o caráter de memória e tradição, de publicação da lenda e valor da memória sentimental estão na gênese desse western, realizado no ano seguinte ao término da II Guerra Mundial (onde John Ford e Henry Fonda serviram na Marinha) e que por isso mesmo traz uma atmosfera de retorno ao lar, de tradição do povo e costumes americanos do Velho Oeste com o qual o diretor se identificava grandemente, mesmo não sendo nativo da região.

Além disso, Paixão dos Fortes é a volta de Ford aos westerns desde Ao Rufar dos Tambores (1939), que seria seguido por quatro longas de outros gêneros (As Vinhas da Ira, A Longa Viagem de Volta, Caminho Áspero e Como Era Verde Meu Vale) e uma série de documentários patriotas ou de educação e moral para soldados durante a II Guerra Mundial.

Nesse rearranjo histórico, Ford fez uso de seu território de filmagem in loco favorito, o Monument Valley, mas também gravou parte da produção no vulcão Torre do Diabo, no Wyoming. Essas paisagens contextualizam o espectador já na abertura do filme, apresentando o território como uma “terra estranha” capaz de fazer o gado definhar ou morrer de fome e sede. O primeiro contato de Wyatt Earp (vivido de maneira preciosamente contida por Henry Fonda) com os Clanton também se dá nessa abertura, talvez uma das mais dissimuladas introduções da maldade no caminho de um homem do oeste já feitas pelo diretor.

Nós ainda não sabemos, mas o roteiro, a essa altura, já está trilhando o caminho do “impactante conto de fadas do oeste”, que terá sua motivação com o assassinato de James Earp. As sequências são filmadas com a intenção de equilibrar a tragédia e a superação da dor através das raízes firmadas, exatamente o que faz Wyatt Earp quando aceita o emprego de xerife de Tombstone. Sua intenção inicial é encontrar as pessoas que mataram seu irmão caçula e roubaram seu gado mas, a longo prazo, a atmosfera familiar ganha espaço, especialmente após o aparecimento de Clementine, que trará luz aos olhos do xerife e um motivo a mais para fazer de Tombstone um lugar bom para se viver.

A cidade cresce a olhos vistos e elementos clássicos do western e cultura americana regional se misturam, culminando em dois pontos importantes: o tiroteio épico (em significado, não em constituição estética) e a semente do amor.

Há muito da memória da guerra em Paixão dos Fortes. Ao mesmo tempo em que vemos demonstrações de amizade e as complexas relações amorosas em cena, entendemos desde cedo que a tragédia pode facilmente colocar fim a esse filete de felicidade, quase como uma maldição a que os homens precisam passar para amadurecerem e saberem valorizar algumas coisas, mesmo que elas não tenham efeito a longo prazo (a emocionante e silenciosa cena de comemoração após Doc Holliday operar Chihuahua é um exemplo disso).

Como de costume nos filmes de John Ford, a trilha sonora tem um papel dramático de introdução e tradição, e é mais utilizada no começo do que ao final da fita. Cyril J. Mockridge (Consciências Mortas, O Rio das Almas Perdidas) apresenta bons temas para o Saloon – alguns deles apenas arranjos de canções tradicionais – e orquestração de caráter épico para o início, porém, com rápido ponto de cadência, passando de um trecho em fortíssimo para um acompanhamento mais leve, especialmente das cordas. Esse jogo de temas tem o seu retrato na fotografia de Joseph MacDonald (Viva Zapata!) que explora com bastante competência os tons escuros do quadro, quase flertando com o estilo noir. Repare no modo como o fotógrafo enquadra e ilumina o personagem de Victor Mature nos momentos mais tensos da fita. O mesmo vale para as belíssimas tomadas noturas, tanto em Tombstone quanto no OK Corral ou no deserto.

Paixão dos Fortes é uma obra sobre as raízes do homem do oeste, sempre lutando para se firmar em um terreno que teima em querer arrancar-lhes a vida. Percebemos nele a delicadeza de mulheres e homens (Wyatt Earp é extremamente vaidoso, com direito a perfume com aroma de rosas e tudo; Doc Holliday não é muito chegado em uísque e sim em champanhe…) e como eles se relacionam emotiva e socialmente. John Ford então lhes dá a oportunidade de serem “o mais americanos possível” e propositalmente brinca com a veracidade histórica de suas vidas, colocando para o público escolher não a versão verdeira (quem se importa com isso?) mas a que mais bonita e emocionante lhe parece.

Paixão dos Fortes (My Darling Clementine) – EUA, 1946
Direção:
John Ford
Roteiro: Samuel G. Engel, Winston Miller, Sam Hellman (baseado no romance de Stuart N. Lake).
Elenco: Henry Fonda, Linda Darnell, Victor Mature, Cathy Downs, Walter Brennan, Tim Holt, Ward Bond, Alan Mowbray, John Ireland, Roy Roberts, Jane Darwell, Grant Withers, J. Farrell MacDonald
Duração: 97 min.

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