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Crítica | Patrick Melrose

por Giba Hoffmann
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– Contém spoilers.

Baseada na série homônima de romances semi-autobiográficos de Edward St. Aubyn, Patrick Melrose é um drama que narra a condição de seu personagem titular, filho único de uma disfuncional família aristocrática inglesa. Com ares contemplativos bem empregados a favor de uma narrativa que desperta o interesse do leitor, a obra de St. Aubyn traz um pouco de sua própria história pessoal, romantizando-na sob um ponto de vista que tende ao naturalismo de uma apresentação crua de suas vivências em sua ambiguidade. Divididas em cinco romances, essas crônicas da miséria de St. Aubyn se prestam bem a um formato de série limitada, na medida em que cada livro lança luz sob um segmento distinto da vida de sua contraparte fictícia, contando com uma variação tonal que explora ângulos diferentes do mesmo drama central. 

Contando com a visão diretorial de Edward Berger, que já provou saber fazer televisão da mais alta qualidade em Deutschland 83 The Terror, e com a sorte de ter como personagem principal um dos papéis dos sonhos de Benedict Cumberbatch, a produção do Showtime encara com graça o desafio de traduzir a prosa introspectiva de St. Aubyn em um drama a respeito da vida e desventuras de Patrick Melrose. Se o espectador chega pela curiosidade (muito provavelmente atrelada à perfomance badalada de Cumberbatch), é certo que o que o mantém fisgado ao longo dos cinco episódios é um conjunto muito bem construído de enredo, direção e atuação, que consegue cumprir em sua narrativa a tarefa nada simples de variar a perspectiva sem mudar o foco.

O episódio de abertura, Bad News, narra a conturbada jornada de Patrick Melrose (Benedict Cumberbatch), que viaja de sua morada londrina até Nova York para atender ao serviço funerário de seu pai e trazer de volta seus restos mortais. Dependente químico em estágio surrealmente agudo, o jovem Melrose esbanja largas quantias de dinheiro em espécie em sua tentativa de lidar com a situação e cumprir com sucesso a odisséia, o que acaba envolvendo muito mais abuso de substâncias e confrontos hiperbólicos com seus demônios interiores do que poderíamos supor num primeiro momento.

Entrevemos aqui a alma torturada do homem, indicada tanto por suas tentativas insistentes em mortificar os próprios sentidos na busca por qualquer prazer e por uma tranquilidade que parece nunca chegar, quanto pelos momentos de puro terror que se anunciam quando a hipérbole e o humor negro desconfortavelmente cessam e dão lugar ao drama realista e seco de sua real condição. A atuação de Cumberbatch é brilhante desde o seu primeiro minuto em tela, característica que felizmente se sustenta por toda a extensão da série limitada. Porém, especialmente neste capítulo inicial, ela traz uma peculiaridade que chama a atenção e traz questionamentos ao espectador não familiarizado com o material original (como foi o meu caso): o posicionamento da narrativa e da própria caracterização de nosso protagonista em relação aos dramas narrados pelo capítulo e, com isso, a questão a respeito da tonalidade intentada pela produção.

A forma como Cumberbatch atua neste capítulo de estreia traz uma distinta relação dúbia de proximidade e distância com a figura de Patrick Melrose. Ao mesmo tempo em que se coloca na própria pele do malfadado personagem titular, a interpretação do ator parece reservar a todo tempo uma certa distância que busca tanto lançar uma luz propriamente auto-satírica a respeito de sua tortuosa persona, quanto (e exatamente neste mesmo sentido) resguardar a hipérbole dos momentos mais agudos e extravagantes de sua jornada dolorosamente entorpecida até Nova York e de volta para casa. Afinal de contas, o que que se espera que pensemos dessa curiosa figura neste primeiro momento? Essa avaliação parece assumidamente querer passar pelo crivo da interpretação de Cumberbatch, que mergulha sem hesitação em atuações teatrais um tanto escrachadas, no esforço em traduzir audiovisualmente a narrativa introspectiva de St. Aubyn, que pôde se beneficiar de uma abordagem em primeira pessoa dos estados alterados de consciência do protagonista.

É plenamente compreensível que, ao final de Bad News, o espectador se encontre praticamente sem nenhuma certeza a respeito dos rumos que a minissérie irá tomar, tanto em termos de roteiro quanto em termos de tonalidade. Para dizer melhor: nenhuma certeza que não o fato de que Benedict Cumberbatch encontra-se comprometido por completo com o papel, e que sua entrega (seja lá de que seja) será máxima. Por mais que isso por si só já represente um potencial, a impressão que me ficou após o bom episódio de abertura foi a de hesitação e incerteza frente à possibilidade do conceito da auto-sátira irreverente de Cumberbatch sustentar a narrativa por mais quatro entradas de sessenta minutos. Por sorte, minha preocupação era mal-informada, e eu mal sabia da recompensa que me aguardava!

Já no segundo episódio, Never Mind, em meio a um recuo da narrativa ao passado esboça-se uma mudança de foco e tonalidade que se concretizará de forma definitiva nos três capítulos que o seguem. Novamente atuando no sentido de nos compensar a falta de uma prosa em primeira pessoa como guia para a renderização dos cenários trágicos da infância de Patrick, a produção investe aqui no diametral oposto do apresentado na estreia, substituindo a hipérbole enérgica por um naturalismo frio. A sátira se torna drama, na medida em que o enredo se encarrega de nos mostrar a realidade dura de um Patrick ainda menino, sofrendo os abusos diversos que deixaram as marcas psicológicas profundas que vimos em sua versão adulta.

David Melrose (Hugo Weaving) se levanta do caixão e passa da figura inane e encolhida que conhecemos inicialmente aos contornos monstruosos do amargo e abusivo pai de família, tão vívido aqui quanto na memória do cambaleante Patrick de 1982. Sob ares contemplativos, os acontecimentos corriqueiros de um final de semana na casa luxuosa da família no sul da França vão dando lugar, de abuso em abuso, ao grande pesadelo de Patrick e seu encontro com o que há de mais perverso no mundo adulto, na forma do estupro vivido no seio de sua própria família. Partido em dois, o garoto confronta a realidade ácrida de um mundo que continua tão indiferente quanto sempre após o ocorrido, sendo que os pequenos lampejos de humanidade, representados pela convidada da família Anne Moore (Indira Varma), são rapidamente silenciados pela atmosfera solidamente sufocante da casa. Esta que se encontra praticamente encarnada na mãe de Patrick, Eleanor (Jennifer Jason Leigh), que já adianta aqui a estratégia do escapismo entorpecido que seria adotada pelo filho tantos anos mais tarde.

Embora o enredo não traga absolutamente nada fora dos limites do que pode ser considerado tradicional (até mesmo arquetípico) para o gênero, a produção exemplifica como uma narrativa impactante não depende nem só da originalidade do roteiro, nem da visão diretorial a respeito dele mas sim de uma sintonia entre os dois que seja capaz de passar um senso de identidade própria. Com a participação de Cumberbatch temporariamente minimizada, a grande narrativa da série encontra seu chão aqui no limite da autoindulgência que caracterizou o foco concedido à estrela no capítulo anterior de modo que, quando ele retorna em Some Hope, já é sob a forma recontextualizada de um enfoque biográfico dramático e sóbrio.

Some Hope inicia propriamente o arco da vida adulta de Patrick, nos apresentando o protagonista em versão reabilitada, desfrutando de uma relativa estabilidade superficial que oculta uma hesitação existencial fervilhante e uma busca angustiosa e sufocada por sentido. A fragilidade com que seu novo estado é retratado recobra a contundente cena final do primeiro episódio onde, após horas e mais horas de patifaria histriônica, um choro sincero desengasga da garganta do jovem ao telefone, logo após se dar conta repentinamente do tamanho da tarefa que tinha pela frente, caso desejasse realmente sair da estagnação.

O terceiro episódio é também o momento em que ganha espaço e sátira social aguçada, sendo que é no contraste com os protocolos sociais estultificantes e na constatação constante da ausência de sentido dessas relações é que se esboça, pela primeira vez na série, um real sentimento de positividade e esperança em meio ao mar de ódio, ressentimento e ironia das crônicas de Melrose. A forma como o enredo satiriza a alta sociedade é debitária do inconfundível humor britânico, trazendo uma narrativa que busca se espantar o tempo todo com os absurdos das convenções sociais da auto-absorvida nobreza, perpassada pela tradicional auto-depreciação ao mesmo tempo ácida e calorosa.

Enredo e direção se deliciam em desnudar o ridículo da aristocracia inglesa e sua completa miséria de espírito, que acaba servindo de pano de fundo para apresentar, sob uma face mais sóbria e relacionável, a miséria mais profunda de Melrose, de caráter existencial. Personagens secundários já conhecidos como Bridget (Holliday Grainger), Johnny (Prasanna Puwanarajah) e Chilly Willy (Gary Beadle) retornam em passagens brilhantes, ajudando a sustentar a instigante narrativa autobiográfica, com seu papel na trama ressaltado de forma a enfatizar o ponto de vista do protagonista a respeito dos acontecimentos.

Mother’s Milk avança mais no tempo, apresentando um Patrick já adulto que vive agora com sua própria família — a esposa Mary (Anna Madeley) e seus dois filhos. A solução otimista que deu as caras ao final do capítulo anterior começa a apresentar sinais de fraqueza, com uma crise pessoal que vai se anunciando pelas beiradas e ameaçando a delicada estabilidade alcançada pelos Melrose. O enredo se usa bem da caracterização feita ao longo dos três episódios anteriores, jogando com as suposições e expectativas do espectador a respeito dos eventos que transpassaram na última passagem de tempo. É notável o quanto, ao longo de um episódio, colocamos em xeque todo o equilíbrio conseguido à duras penas pelo protagonista, que encara um drama familiar muito bem trabalhado.

Em um paralelo interessante com Never Mind, a crise da vez novamente se desenrola ao longo de um final de semana quente na mesma casa de verão da família Melrose ao sul da França. Desta vez, trata-se do conflito a respeito da herança de família, que inclui o próprio local, a qual Eleanor pretende deixar para um grupo de curandeiros charlatões, sob a justificativa de finalmente fazer bem a quem necessita. Pode não ser o momento mais fragilizado do protagonista (que viria a seguir, em parte em consequência destes eventos), mas certamente é um dos mais dramáticos. A casa de veraneio, com toda a bagagem sentimental monstruosamente negativa que evoca, consegue ainda ressoar uma frágil unidade familiar para Melrose, apenas para ser descartada em favor da decisão implacável e entorpecida de Eleanor, ainda se fazendo presente apenas com sua falta, como sempre fora até então.

A nobreza de Patrick em seguir os desejos da mãe, confrontada com o radical abandono vivido por ele, foracluído em seu cinismo fanático, armam um conflito dele com Eleanor que traz uma crueza e atualidade que portam um sofrimento totalmente diverso daquele entre ele e a memória terrível de David, ainda que ambos se entrelacem no aterriorizar de Melrose em relação a qualquer possibilidade real de vínculo e abertura. Posso imaginar que, em comparação com as outras tramas da mini-série, a deste quarto episódio corra o risco de passar batida, ou ao menos ser recebida aquém de sua real significância. No meu ponto de vista, trata-se de um dos momentos mais incisivos do enredo e da atuação brilhante de Cumberbatch, que nessas alturas é Patrick Melrose para muito além das ótimas atuações demonstradas lá no início da narrativa.

Tanto Mary quanto Eleanor são bem apresentadas e exploradas de forma interessante pelo capítulo, de modo a explicitar a dificuldade de Melrose em lidar com o jogo de vozes em meio ao qual se vê enredado, por mais que ele tente constantemente exercer uma moral da qual jamais teve um modelo concreto. É notável o quanto a narrativa não as enfoca muito além do alcance da perspectiva do protagonista, ao mesmo tempo em que reserva aos personagens secundários suas vozes próprias, não submetendo nenhum papel a um simples dispositivo dramático. Esse cuidado com a caracterização se prova frutífero na medida em que a produção claramente se vê encarregada de eleger trechos pontuais de um material bem mais extenso, sendo que era essencial que os momentos simbólicos não caíssem em um melodrama.

A continuidade entre Mother’s Milk At Last ecoa a passagem das duas situações massacrantes pelas quais Melrose acaba passando: a aniquilação de sua herança familiar (em termos financeiros, mas muito mais essencialmente em termos simbólicos) e o pedido de eutanásia de Eleanor. Perdida a casa e morta a mãe (nos dois casos, através de um doloroso auto-sacrifício por parte de Patrick), fica vivo ainda o vínculo com o horror e o desejo pelo entorpecimento. At Last trata da dupla morte de Eleanor, sob a perspectiva de Patrick: aquela de fato, e a que ainda se encontra nele oferecendo uma reserva sem fim de energia no sentido da auto-destruição.

O roteiro do capítulo final, embora traga linhas narrativas de todo o restante da série e as amarre em torno dessa escolha temática poderosa, abraça um efeito anti-climático proposital e inevitável. A superação de Patrick ocorre sem um grande momento de virada, sem nem mesmo o romancismo cotidiano visto nos momentos-chave anteriores de sua história. Ela se dá de forma lenta, arrastada e quase que sem rumo. Em meio a uma boa sátira social, a morte da antiga vida de Patrick vai se montando sem grandes pretensões, em um jogo entre passado e presente que demora para articular seu ponto — óbvio que acabaria sendo, no final das contas. É a possibilidade de saúde e equilíbrio que se anuncia, nada definitiva, mas que é bem contextualizada ao ponto de ser bonita e convencer.

Patrick Melrose realiza muito bem uma trama que, ao menos em um primeiro momento, poderia facilmente ser tomada como uma tradicional peça de “gente rica também sofre”. E, de fato, é aí que a narrativa se inicia! Porém, para além (ou aquém) das convenções do gênero e do formato, seu segredo está na fidelidade com que o  material aborda a construção do personagem sob diferentes enfoques, que funcionam muito bem em conjunto. Trata-se de uma trama biográfica que é tanto sobre vício, trauma e abuso (dos mais diversos tipos e grandezas) quanto sobre a busca por equilíbrio, sentido e vínculo em meio a um jogo de forças que parece repelir essa tentativa a todo custo. Ou seja, com alguma liberdade de definição, a condição-limite de todos e de tudo — mas que aqui adquire os contornos interessantes de uma prosa que consegue ser relativamente otimista, sem se abster do realismo (ou seria o inverso?). Patrick chega auto-referente e hiperbólico, e sai de cena humilde a respeito de sua real grandeza — finalmente o alívio, após tanta miséria. 

Patrick Melrose – Série Limitada (EUA, 12 de maio a 9 de junho de 2018)
Direção: Edward Berger
Roteiro: David Nicholls, Edward St. Aubyn
Elenco: Benedict Cumberbatch, Hugo Weaving, Sebastian Maltz, Jennifer Jason Leigh, Jessica Raine, Prasanna Puwanarajah, Pip Torrens, Anna Madeley, Indira Varma, Dainton Anderson, Gary Beadle, Morfydd Clark, Blythe Danner, Holliday Grainger, Celiar Imrie, Guy Paul, Marcus Smith, John Standing, Eileen Walsh, Jamie Bradley
Duração: 300 min. no total (aprox.)

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