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Crítica | Pocilga

por Luiz Santiago
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Pocilga estreou em 31 de agosto de 1969, no Festival de Veneza, mas o diretor Pier Paolo Pasolini já vinha preparando-o desde 1965, antes mesmo dos eventos de maio de 68 que trariam a crise do marxismo e o recrudescimento de alas reacionárias ou extremadas à esquerda e à direita (um tema caro ao roteiro do longa, ao menos em alegoria).

Dito pelo próprio diretor como uma crítica à sociedade de consumo, ao poder e a questão do “obedecer ou morrer”, Pocilga se estabelece como uma de suas realizações mais estranhas, não necessariamente pelo conteúdo (até porque existe Saló ou 120 Dias de Sodoma) mas pelo fato de o filme também ser dito pelo próprio diretor como uma grande metáfora ou ainda um grande jogo sádico entre psicologia humana, política e sociedade, tríade que pontua a civilização e é responsável tanto pelo seu aparente sucesso quanto pelo seu comprovado fracasso.

Temos então duas histórias mostradas em narrativa paralela, uma silenciosa, no século XVI e outra verborrágica, no século XX. O consumo – de comida, de energia psíquica, de ideais e de vidas – está presente em ambos os atos, mas eles são formal e dramaticamente distintos, gerando no espectador uma particularidade de olhar interessante mas que, acredito, pode comprometer a avaliação geral da obra para muitos.

O melhor dos dos dois blocos é o que se passa no século XVI e tem Pierre Clémenti (recém saído de A Via Láctea ou O Estranho Caminho de São Tiago) como protagonista. O silêncio é o seu produto chave e usado pelo diretor de forma primorosa, rompido no momento certo, pela pessoa certa e com um tom e texto adequados à sua psicologia. Não é preciso muito para o espectador compreender os eventos aí narrados: a mostra do homem nu e cru, sem máscaras, vivendo em sua selvageria canibal ou primitiva de um lado e em guerra e religião cega e pouco clemente do outro (ou seja, diferentes formas de ser selvagem em um ambiente também selvagem que é a região do Vulcão Etna, na Sicília, onde e as filmagens aconteceram).

O significado pretendido pelo diretor alcança o ponto máximo quando a religião – ou seja, uma forma organizada de sociedade e claramente a representação do poder na época – se encontram, num afunilamento que resulta em prisão e entrega dos corpos dos criminosos para serem devorados pelos cães.

Perceba que a relação desse final está diretamente ligada ao bloco da Alemanha pós-nazista, protagonizada por um dócil Jean-Pierre Léaud e uma completamente perdida Anne Wiazemsky como parte da nova e confusa geração; e divinamente protagonizada por Alberto Lionello, Ugo Tognazzi e Marco Ferreri (visivelmente se divertindo muito no papel) como parte da “velha ordem em readaptação”. Ao invés de cães devorando homens, temos porcos. Ao invés de latência sexual e necrofilia temos sublimação de desejo e zoofilia.

Há uma unidade temática tremenda entre os dois blocos, uma espécie de ‘continuidade através dos tempos’ que pode ser vista até em alguns aspectos fotográficos ou na forma de Pasolini filmar seus protagonistas, todavia, os eventos da Alemanha de Klotz e Herr Herdhitze ganham na sequência revolucionária e existencialista de Julian e Ida o seu elo mais fraco, em parte por conta da atriz (e também podemos dizer que Léaud não tem aqui um de seus melhores trabalhos), em parte porque destoa completamente da ironia e humor negro da excelente sequência entre os empresários no poder.

Pareceu-me que Pasolini quis demonstrar uma confusão teórica, política e até psíquico-emotiva na geração dos jovens e um engajamento sombrio, historicamente ultrapassado mas ainda em voga e em tentativas ousadas de renovo para se manter no poder por parte dos “velhos porcos”, o que justifica em intenção a insossa relação entre Julian e Ida e todos os diálogos que travam (especialmente os iniciais), mas sua figuração trôpega em um filme tão bem tratado no bloco dos canibais e na geração da guerra não foi a melhor escolha do diretor.

É compreensível que Pocilga seja um filme desprezado e odiado por uma parte do público. Não se trata de um exercício primoroso de Pasolini e o diretor caiu na armadilha de contar com a relação do público em relação às suas metáforas e piadas ou tratamento histórico-político-filosófico, o que nem sempre é válido em obras de viés político ou social sem o apontamento de caminhos para o público, mesmo que só em sugestão (vejam só a eficiência de Buñuel ao levar isso em conta em O Anjo Exterminador, O Discreto Charme da Burguesia e O Fantasma da Liberdade). Todavia, o diretor acerta no tratamento dessas metáforas durante a maior parte do tempo, entregando um trabalho que, se for lido corretamente, é certo que resultará em uma sessão tensa e reveladora para o espectador, mesmo aquele já familiarizado com o universo pasoliniano.

Pocilga é um enigma difícil de digerir, mas, dependendo do estômago em que cair, poderá facilmente ganhar o status de uma ótima refeição.

Pocilga (Porcile) – Itália, França, 1969
Direção:
Pier Paolo Pasolini
Roteiro: Pier Paolo Pasolini
Elenco: Pierre Clémenti, Jean-Pierre Léaud, Alberto Lionello, Ugo Tognazzi, Anne Wiazemsky, Margarita Lozano, Marco Ferreri, Franco Citti, Ninetto Davoli, Luigi Barbini, Antonino Faà di Bruno
Duração: 99 min.

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