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Crítica | Ponto Final: Match Point

por Luiz Santiago
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Após a fase mais leve e não tão admirada de sua carreira tardia — período que foi de O Escorpião de Jade até Melinda e MelindaWoody Allen fechou alguns contratos para filmar na Europa, deixando pela primeira vez a sua terra natal para se estabelecer por um tempo de trabalho no Velho Continente, período que rendeu pelo menos três obras-primas: Ponto Final: Match Point (2005), parcialmente financiado pela BBC Films, o que obrigava o diretor a priorizar uma equipe britânica e, claro, filmagens no Reino Unido; Vicky Cristina Barcelona (2008), realizado na Espanha e Meia-Noite em Paris (2011), realizado na França.

Em Match Point o diretor fez aquele que classifica como o seu filme favorito dentre os que dirigiu e lançou a versão mais completa — ou mais adequada ao tempo em que surgiu? — do conflito de base religiosa e existencialista que emprestou de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, onde o impasse de atingir a salvação pelo sofrimento ou, em última instância, querer fugir do sofrimento através de diversos prazeres, mas ser incapaz disso, vem à tona na forma de um relacionamento infiel entre Chris (Jonathan Rhys Meyers) e Nola (Scarlett Johansson). Cada um deles, atormentados por questões pessoais, irá pagar por seus crimes maiores e menores e é deste conflito que o filme tira a sua maior vantagem, valendo-se de um roteiro limpo e ácido assinado pelo próprio Allen (e indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original) e uma direção inteligente e eficiente, que remota ao período mais dramático do diretor no final dos anos 80, com os longas Setembro (1987), A Outra (1988) e Crimes e Pecados (1989), este último também marcado pela obra de Dostoiévski — ou devemos dizer, “o Match Point dos anos 80“?.

Com este foco dramático, o diretor procurou guiar e apresentar os personagens de uma forma que ele nunca tinha feito antes, através amplo uso de óperas — todas elas gravações em discos de 78 rotações pré-Primeira Guerra Mundial, na voz do tenor italiano Enrico Caruso — e trazendo para o filme o mesmo desprendimento do real, o mesmo fulgor dramático, beleza e narrativa episódica que encontramos nas óperas. Além disso, o espectador é transportado para um lado de grande sofrimento, crime, culpa e engano ao mesmo tempo que vê surgir sequências de um cotidiano dócil entre casais e cenas em que a libido do casal protagonista é destacada ao máximo, tornando este (perdendo apenas para Vicky Cristina Barcelona, deva-se dizer) o filme de conteúdo e exposição mais sexy do diretor.

Há algumas camadas do enredo a serem consideradas com maior atenção. O texto explora uma forte linha de ascensão social, colocando de um lado dois indivíduos de origem pobre (Chris e Nola) que encontram pares de uma família rica e passam a gostar do luxo e estilo de vida que esses relacionamentos lhes proporcionam. Isto será um elemento de grande poder sobre Chris no futuro e torna o personagem, desde o início introspectivo, ainda mais interessante de se ler. De outro lado, temos a família de muitas posses que parece acumular toda a ingenuidade do mundo. Todavia, há um interessante contraste aí. Eles não são colocados como distantes ou dotados de mal caráter pelo diretor, como parece ser a mímica de certas posições sociais em filmes, sempre que temos personagens de classes sociais diferentes. É justamente pela humanidade e complexidade de todos, independente de suas origens, que o longa se desenrola bem e cada um de seus elementos ganham ainda mais força porque se chocam, se influenciam e transformam um ao outro.

Alguns espectadores podem achar o começo rápido demais, com pouco tempo para que o público entenda de verdade o que está acontecendo, especialmente nas motivações dos personagens. Essa montagem rápida e roteiro com diálogos que mais parecem subterfúgios se farão entender adiante porque teremos o personagem de Jonathan Rhys Meyers em destaque e é a partir de sua ascensão social e descida ao inferno da culpa que veremos os temas paralelos da fita explorados: o machismo, os perigos morais que a riqueza pode trazer para algumas pessoas e, novamente, o diálogo dramático e psicológico de todos mais seus equivalentes em óperas como Macbeth, La Traviata, Il Trovatore, Rigoletto e O Elixir do Amor.

Jonathan Rhys Meyers e Scarlett Johansson formam um casal com fortíssimo sex appeal e entregam atuações excelentes durante toda a fita. Destaco como cereja do bolo o trabalho de Rhys Meyers após o ato trágico ao final — que recebeu um tratamento incomum do diretor: toda a sequência é acompanhada não de uma ária, mas de um diálogo profundo entre Iago e Otello, da ópera de Giuseppe Verdi. Os personagens shakespearianos entram aqui como reafirmação fatal do momento e também como segunda linha de enredo, adicionando lirismo a um ato infame — e a forma como Allen finaliza a obra, colocando o personagem diante de algumas provações e reafirmando o discurso levantado no início, de que, algumas vezes, a vitória ou derrota de alguém pode ser definida por um simples ato de sorte.

Como a obra transcorre um considerável tempo na vida dessas famílias, coube ao diretor de fotografia Remi Adefarasin mostrar um amplo número de apresentações cênicas — espaços de casas, apartamentos, museus, bares, ruas, lojas –; exploração cuidadosa de espaços internos, captura de luz e atmosfera para dias claros, nublados, nevados ou chuvosos… um grande esforço que acompanha a evolução ou involução dos personagens. A foto não expõe exatamente os protagonistas a “provas de luz”, antes, modifica todo o espaço em torno deles, fazendo-os mergulhar quase como se fosse destino, sem destacá-los com foco de luz ou sombras, nessa aura de momentos que eles mesmos causaram. Há um pouco de fatalismo nisso, mas não quero dizer que se trata de algo negativo, muito pelo contrário. A temática do filme passa justamente por este viés.

Ponto Final: Match Point é um drama de caráter clássico, revisitando não só os pontos mais existencialistas e niilistas da filmografia de Woody Allen, como também a essência da obra literária na qual foi inspirado. A forma como a ópera é aliada ao roteiro e o modelo inicialmente episódico, depois, mostrado como um ato inteiro e então como uma junção de árias decisivas tornam a fita um exercício técnico novo para Allen, que mesmo depois de tanto tempo, seguia experimentado possibilidades de como contar uma história dentro de padrões diferentes. Esta, sem sombra de dúvidas, é uma de suas melhores.

Ponto Final: Match Point (Match Point) — Reino Unido, Rússia, Irlanda, Luxemburgo, EUA, 2005
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Jonathan Rhys Meyers, Scarlett Johansson, Alexander Armstrong, Paul Kaye, Matthew Goode, Brian Cox, Penelope Wilton, Emily Mortimer, Janis Kelly, Alan Oke, Mark Gatiss
Duração: 124 min.

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