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Crítica | Precauções Diante de uma Prostituta Santa

por Luiz Santiago
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Existem mais duas variações aqui no Brasil para o título deste curioso filme de Fassbinder: Cuidado com Essa Puta Sagrada ou apenas Cuidado com a Puta Sagrada. A tal puta, claro, não é o objeto do filme, uma vez que ela não existe como pessoa na trama. Mas existe como ideia. Ou símbolo de arte.

Poderíamos ver a personificação da “puta sagrada” na formação da Comuna (o trocadilho com o comunismo e a brincadeira com o pessoal do Antiteatro são propositais), que em uma dieta destrutiva de Cuba Libre, gritos e atuações anti-naturalistas tenta realizar o longa Patria o Muerte em um hotel, na Espanha. Também poderíamos vê-la no próprio filme a que estamos assistindo. Ou ainda no próprio cinema, a arte diante da qual a precaução é a palavra de ordem, afinal, o caos, o desespero, a brutalidade e a amargura estão em todos os seus meandros de produção, esperando por mais uma vítima atrás das câmeras, escondida das telas, além das bilheterias e do sucesso ou fracasso da fita pronta.

Marcando o “final da fase do Antiteatro” para Fassbinder (que veria em seu filme seguinte, O Comerciante das Quatro Estações, um trampolim definitivo para os melodramas distanciados, fruto do contato do diretor com o cinema de Douglas Sirk), Precauções… é uma obra metalinguística que dialoga de maneira crítica com o cinema, trazendo à tona a sua crueza e paixão numa mescla herética de A Noite Americana com O Desprezo, e de seu método insano de produção junto a um cenário onde se destaca o trabalho com o tempo real e fílmico (destaque aqui para a montagem de Fassbinder — assinando como Franz Walsch — e Thea Eymèsz), numa relação visual e temática entre O Ano Passado em Marienbad e Oito e Meio.

A Comuna atravessa um verdadeiro inferno emocional e financeiro, tentando realizar o filme com um orçamento curtíssimo e crises existenciais de praticamente todos os que estão envolvidos na produção.

Fassbinder se destaca aqui pela exímia forma como manipula os espaços e os expõe na montagem, realizando não só um diálogo através do roteiro mas através dos olhares, da ideia de ciclo comportamental, do flerte entre os membros da equipe de produção e das relações de poder estabelecidas pelos cômodos do hotel e os sets de filmagem.

O diretor usa a temática central de O Amor é Mais Frio que a Morte em dado momento do filme — uma forma literal de encarar a questão — e traz novamente a excelente discussão sobre sexualidade apresentada em O Machão para formular os conceitos de vida pessoal e vida artística de seus personagens. Vemos então os atores “prensados contra a parede”, cultivando aparências e sofrendo a amargura da (in)satisfação sexual e sentimental. O filme faz um vai-e-volta nesse caminho entre a vida pública e privada, privilegiando o descontrole, a violência, os gritos; cortando o glamour que normalmente se atribui ao cinema.

O que está em jogo aqui são os percalços para a realização do filme, não necessariamente o processo artístico em si. O desprezo aos “cargos menores”, a xenofobia envernizada, os caprichos e estrelismos dos atores, a falta de dinheiro, as pulsões sexuais enrustidas ou publicamente assumidas (o diretor trabalha de maneira extremamente crítica o papel do personagem gay ou lésbica no contexto comunitário cinematográfico) e todas as ideias artísticas são colocadas na mesa e separadas, embaralhadas, despidas. Incomoda um pouco a forma como o diretor expõe essa relação picotada no final, mais como uma encenação do que como parte do processo apresentado até ali, mas de nenhuma forma esse desfecho um pouco irregular afeta grandemente o trabalho do diretor em Precauções…

Através de performances musicais de Elvis Presley (Santa Lucia), Ray Charles (Let’s Go Get Stoned), Leonard Cohen (Suzanne, So Long Marianne, Winter Lady, Sisters of Mercy) e Spooky Tooth (I’ve Got Enough HeartachesHangman Hang My Shell on a Tree) além de uma ária de Gaetano Donizetti, Fassbinder constrói um filme sobre sua própria forma de fazer cinema (ele se autorreferencia com temáticas literais e estilísticas de Os Deuses da Peste, Rio das Mortes e Whity), racionalizando sobre o peso individual e coletivo do processo fílmico. A câmera fixa e de pequenos planos na fase final da obra (em contraste com os amplos movimentos e planos longos inciais) ajudam a fechar bem esse ciclo particular, que acaba por se concluir num patamar de perplexidade ou em lamento resignado, como na anedota em que Goofy pensa o quão chocante fora para a “criança” Wee Willy descobrir-se um perigoso gângster. Para Fassbinder, o perigo sempre está à espreita quando se trata da “arte de todos”, a puta sagrada que é o cinema.

Precauções Diante de uma Prostituta Santa (Warnung vor einer heiligen Nutte) – Alemanha Ocidental, 1971
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder
Elenco: Rainer Werner Fassbinder, Lou Castel, Eddie Constantine, Marquard Bohm, Hanna Schygulla, Margarethe von Trotta, Hannes Fuchs, Marcella Michelangeli, Karl Scheydt, Ulli Lommel, Kurt Raab, Herb Andress
Duração: 103 min.

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